Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Banalidade, violência e absurdos no novo livro de André Sant'Anna

Não é de hoje que André Sant’Anna demonstra um talento formidável para navegar nesse pântano de dissonância cognitiva que é o Brasil. Os discursos e comportamentos bizarros, autocontraditórios, violentos e delirantes já marcam presença nas narrativas do autor publicadas desde o final da década de 1990, longas e curtas. Na novela “Sexo” (1999, republicada no volume “Sexo e amizade”, 2007), por exemplo, os personagens são identificados por alcunhas como a Apresentadora do Programa de Variedades da Televisão, Que Era Loura, o Japonês da IBM e o Executivo De Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas, e não se esforçam para transcender esses epítetos — pelo contrário.



No romance “O paraíso é bem bacana” (2006), o jogador de futebol Mané troca o Santos pelo Hertha Berlin, converte-se a uma vertente extremista do islã, é rebatizado como Muhammad Mané e acaba envolvido em um atentado terrorista. Nas histórias de “O Brasil é bom” (2014) e do recém-lançado “Discurso sobre a metástase” (Todavia), temos esse mesmo esmiuçar de uma terrível banalidade linguageira que, de uma forma ou de outra, sempre resulta em violência.

 

Qualquer pessoa que vive no Brasil contemporâneo (e não é uma boçal) conhece bem e, em muitos casos, sente na pele essa violência do discurso e esse discurso da violência. Ambos são lados de uma mesma moeda, baseados na repetição de chavões e mentiras, na corrupção do verbo, da república e do espírito. Para dar conta desse deserto da consciência que é — sempre foi, sublinhe-se — o nosso país, Sant’Anna recorre a um estilo prolixo e repetitivo, metralhado por lugares-comuns e caracterizado por uma, vá lá, lógica interna muito peculiar. Ou seja, é uma paródia literariamente estupenda das imbecilidades que assolam as redes sociais e os almoços domingueiros de boa parte das famílias brasileiras.

 

“Discurso sobre a metástase” é dividido em três partes: “O homem”, “O autor” e “O discurso”. A primeira delas é composta por catorze histórias de tamanhos variados (qualquer coisa entre uma e 39 páginas), incluindo a que dá título ao volume. A segunda parte apresenta três narrativas autobiográficas, com destaque para “A história do meu pai”, bela elegia para Sérgio Sant’Anna, falecido em 2020: “Eu não conseguia enquadrar a literatura do meu pai junto com as outras literaturas que eu estava começando a ler. Só algum tempo depois eu comecei a conhecer outras literaturas que não se encaixam em lugar nenhum. Literatura de exceção?”.



Por fim, na terceira parte, temos uma narrativa que emula a forma teatral (à certa altura, Godot entra em cena e pergunta: “E aí? Qual que vai ser?”) para descrever, entre outras coisas, a ascensão dos Imbecis (sic) que hoje testemunhamos: “Ainda tinha os livros”, diz o personagem Zeitgeist, “mas (...) não foi preciso nem fazer lei. Foi uma coisa espontânea, lindo, as fogueiras de palavras, os imbecis tomando as ruas, os imbecis todos trazendo seus agrupamentos de palavras impressas como combustível para as fogueiras. Finalmente, éramos todos iguais, todos imbecis”.

 

O teor e a reconstituição dessa imbecilidade pela via ficcional são muitas vezes cômicos, mas também aterrorizantes. É algo próximo demais do cotidiano grotesco sob o qual estamos soterrados. E não há, aqui, nenhuma facilidade. Tome-se como exemplo a história-título. Nela, a obtusidade é devassada por meio de uma forma também obtusa, que reitera certas expressões (“homens de bem”, “está chovendo dinheiro em Nova York”, “croc-chips-bits-burgers”, “dinheiro, que é a coisa mais importante que existe”, “a culpa é do direitos humanos”, “classe baixa alta”) e é repleta de contradições (“Libere o seu inconsciente fascista! Diga sim à violência do bem!”; “Faça uso da violência legítima que a sua superioridade natural permite e garanta a sobrevivência da civilização que erguemos (...), dos croc-chips-bits-burgers que continuarão sendo os pilares do inesgotável crescimento de nosso Produto Interno Bruto”).

O ridículo e o absurdo

O emaranhado absurdo desse discurso ridiculariza à perfeição os esperneios de certas figuras da República, como os tuítes daquele famigerado “vereador federal” e as falas golpistas do chefe do Executivo, bem como os mugidos da massa em que se misturam fundamentalistas religiosos, ignorantes, paranoicos, ressentidos e oportunistas, todos naquela “angústia das novas classes, a nova classe média, a nova classe, a Classe Baixa Alta”, nesse “Brasil cheio de policiais honestos vibrando com o filme do Padilha, dando tapas nas caras de adolescentes e jovens de cor escura que usam boné com a aba para trás e corrente no pescoço” (em “Purgatório”), Brasil no qual o “ pobre, quando é criança, vai na escola pública ruim e toma um tiro na cabeça, no meio da aula” (em “Os melhores do mundo”).



Em meio à sujidade pretérita e presente, não surpreende que um levante social se dê por conta do racionamento que, mais uma vez, está a caminho, “com aquele fedor que já estava tomando conta de tudo. Aquele cheiro de podre no ar. Aquele cheiro de civilização em decadência” (em “A idade das trevas”).

 

Em suma, as histórias expõem esse irracionalismo essencial que suplantou qualquer possibilidade de convivência pacífica. O radicalismo formal é, portanto, uma resposta ao desarvoramento do real, presente mesmo nos textos que versam sobre outros temas: “Ela vai morrer no final” descreve um traumático acúmulo de adiamentos, e a história se transforma e desvia para chegar ao mesmíssimo e irrespirável lugar. Por tudo isso, “Discurso sobre a metástase” é um notável exemplar da “literatura de exceção” que André Sant’Anna enxergava nos escritos do pai.

*André de Leones é escritor, autor do romance “Eufrates” (José Olympio), entre outros

Trecho

“Quando saiu ‘Confissões de Ralfo’, eu já era o George Harrison e o livro era todo psicodélico, e eu ficava ouvindo o ‘Dark Side of the Moon’ o tempo todo, e o ‘Clube da Esquina’, e a cidade do livro era Gotham City e, além de ser George Harrison, eu era também o Batman, e, nessa época também, setenta e poucos, eu comecei a ouvir as histórias da ditadura militar, as torturas e tal, e, no ‘Ralfo’, tinha o trecho do ‘Interrogatório’, que dava medo, sei lá, podiam prender o meu pai pelo conto, sei lá, mas eram engraçadas as perguntas dos torturadores, os temas das perguntas e eu pensava nos meus professores da escola me torturando, a minha professora de português, que eu amava, me torturando. (...)” 





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