Jornal Estado de Minas

PUBLICAÇÕES CENSURADAS

Leila Danziger faz releitura dos 'Cadernos do povo brasileiro'

Como se um prego atravessasse minha mão. Ao segurar o novo livro de Leila Danziger, “Cadernos do povo brasileiro”, sinto isso. Uma haste de cobre rasgando a capa, as páginas, a pele e o músculo, arrebentando os ossos e rompendo veias e artérias. Receio olhar para o chão e encontrar uma poça de sangue se espalhando mais e mais à medida que as gotas vão caindo. Com a capa e a contracapa, a sensação foi a mesma. Mas o metal trespassou também os pensamentos, a xícara de café da manhã seguinte, a tela do computador em que escrevo este texto, os degraus de casa, o asfalto na rua, a máscara cirúrgica, o preço do feijão, a fome estendida nas calçadas, a bolsa de valores, a estátua do assassino em chamas, a saudade de um abraço, a marcha em defesa da terra, a história, a luta. 





Isso porque não há como sair indiferente da galeria de imagens que forma a obra, pois ela nos remete não apenas a eventos do passado, mas, sobretudo, a condições estruturais que permanecem na atualidade, que fazem deste país, nas palavras de Darcy Ribeiro, “moinhos de gastar gente”. Lançado pela Editora Relicário, o livro é resultante da instalação artística “Perigosos, subversivos, sediciosos (Cadernos do povo brasileiro)”, exposta no Memorial da Resistência, em São Paulo, entre outubro de 2017 e março de 2018. O mesmo edifício que abrigou o Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo (Deops-SP), onde pessoas foram presas, torturadas e mortas por agentes da ditadura militar, práticas que se perpetuam até hoje pelas periferias e aldeias indígenas no Brasil, como também pontua o impactante trabalho da artista visual. 

A partir de documentos produzidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), Danziger construiu a obra em duas partes: livros censurados por razões políticas ou morais durante o regime; e retratos de vítimas do Estado, seja durante a ditadura, como Vladimir Herzog, Frei Tito e o povo waimiri atroari, seja mais recentemente, como Amarildo de Souza, Cláudia Ferreira e os jovens de Costa Barros. No livro, a solução da artista para transpor a instalação para a página impressa galvaniza a relação perversa entre as imagens e os mecanismos que reforçam a sua ausência. Entre os livros proibidos, estão obras de Paulo Freire, Plínio Marcos, Frantz Fanon, Cassandra Rios e exemplares da coleção que intitula o trabalho de Leila Danziger, professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora e poeta.

“Cadernos do povo brasileiro” foi um importante projeto de formação política no país. Teve sua publicação pela Civilização Brasileira entre 1962 e 1964, sob liderança do grande editor Ênio Silveira, em parceria com o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/Une), com papel fundamental na difusão dos livros entre os movimentos sociais e sindicatos. Com moderno projeto gráfico, os títulos vinham em forma de perguntas, como se nos escavassem, em busca do que somos feitos: Quem é o povo no Brasil? Por que os ricos não fazem greve?

De que morre o nosso povo?. Na instalação, cada livro foi perfurado por um prego de cobre e fixado nas mesmas paredes que testemunharam a violência contra os corpos “perigosos, subversivos e sediciosos”. Na versão impressa, as imagens dos livros atravessados pelos pregos são entremeadas pelos retratos dos mortos como se também os perfurasse. Estão ligadas pelo destino atroz a que a máquina da morte do Estado e da colonialidade os lançou, rasurando seus nomes, apagando suas histórias e desaparecendo com seus corpos.





As fotografias, então, os reivindicam. Cada uma é velada, em sua dupla acepção, por uma página de sumário, folha de rosto, dedicatória e outros paratextos dos livros censurados. O crítico francês Gérard Genette denomina esses elementos textuais de seuils, ou seja, “limiares”, o primeiro instante, limite mínimo de um começo. Na recusa “em dar continuidade à reprodução traumática dos rostos das vítimas”, Danziger não apenas dá outra configuração ao tempo em que essas vidas foram violentamente lançadas, mas também resgata seus vínculos com a nossa história e expõe a potência de suas margens. Como os retratos estão cobertos por essas páginas, não há como ver integralmente os rostos, mas conseguimos distinguí-los pelas bordas, pelos limites em que se (re)inscrevem. 

No Império Romano, as máscaras mortuárias reproduziam os traços do morto para que fosse lembrado, permanecendo, assim, vivo em uma dimensão simbólica. Elas se chamavam imago, palavra latina de onde vem “imagem”. Nas imagens de “Cadernos do povo brasileiro”, as páginas que cobrem os rostos delineiam um retrato fragmentado do nosso país, mas reforçam sua presença na memória coletiva, constituindo uma dolorosa e necessária interpretação do Brasil. 

*Rodrigo Jorge Ribeiro Neves é professor, crítico e doutor em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
 
“Cadernos do povo brasileiro”
• Leila Danziger
• Relicário Edições
• 184 páginas
• R$ 59,90

Sobre a artista

Leila Danziger é artista plástica, professora do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e poeta. No seu site, uma das definições para a sua expressão artística é “a investigação da página impressa (jornal, livro, documento histórico), orientando-se pelos atritos entre a micro e a macro história, entre a memória familiar e as construções da memória de violências extremas”. Com trabalhos desenvolvidos por meio de impressões gráficas, fotografia, vídeo, instalação e escrita, ela homenageou Lasar Segall no trabalho “Navio de emigrantes”, que estabeleceu conexão entre a crise de refugiados na 2ª Guerra Mundial e a crise imigratória no século 21.  Danziger participou recentemente da exposição coletiva “Sobre os ombros de gigantes”, na Galeria Nara Roesler de São Paulo e New York, e publicou, pela editora carioca 7Letras, o terceiro livro de poesias: “Cinelândia”.




audima