Jornal Estado de Minas

Novo livro reúne contos de Luiz Vilela

O escritor Luiz Vilela anda avesso a entrevistas, refratário a conversas, mesmo virtuais, para divulgar seu livro mais recente, e recluso na terra natal, Ituiutaba, no pontal do Triângulo Mineiro, a 678 quilômetros de Belo Horizonte. “Ando confinado física e mentalmente”, desculpa-se, pelo telefone, diante do pedido do repórter. Paciência. Os amigos contam que o contista estaria ainda mais recluso do que nunca durante a pandemia, embora os bem próximos garantam que ele continua ótimo de papo, só não gostando mesmo quando o assunto resvala para o plano pessoal.





O certo é que, na ficção e na realidade, ele tem histórias de sobra para contar e surpreender a cada frase. Afinal, conforme já confessou: “Minha vida é escrever; escrever é minha vida”.

Neste agosto quente e ensolarado, chega às livrarias a antologia “50 contos” (Faria e Silva Editora), título autoexplicativo em gênero literário, número de histórias e grau de sensibilidade do autor de 78 anos, que sempre tem como companhia, ao traduzir inspiração em palavras, uma máquina de escrever. “Isso aí já é outra história”, brinca ao falar sobre seu equipamento de trabalho. Depois de redigidos, e lidos em voz alta, os textos são passados para o computador por um ajudante, sendo, então, revisados meticulosamente e enviados para edição.

“São seis décadas dedicadas à vida literária”, diz o editor Rodrigo Faria e Silva, de São Paulo (SP), com a experiência de quem conhece e trabalha com Luiz Vilela há 20 anos. “Minha editora nasceu por sugestão dele”, observa, para de imediato destacar, no contista, a “grande figura humana, pessoa generosa e dono de profunda delicadeza”. 





No trabalho, Luiz Vilela se agiganta e vai além do que escreveu nas páginas em branco. Rodrigo se vale da palavra ‘meticuloso’ para mostrar o nível de preocupação do contista com o processo de edição da sua obra. “É uma relação de respeito mesmo, que passa pela escolha do tamanho da fonte (tipo de letra), capa, orelha, enfim, todos os detalhes.”

A precisão cirúrgica na escrita, principalmente nos diálogos, chama a atenção e virou marca registrada. “Sem dúvida, é o maior dialoguista da literatura brasileira. Constrói com clareza e maestria, cioso do texto para não cometer equívocos nem escorregadelas”, afirma Rodrigo. Depois de revisar os textos, Luiz Vilela participa de todo o processo de edição. Nestes tempos de pandemia, não foi diferente com a antologia “50 contos”, por meio dos contatos estabelecidos por telefone e e-mail.

Da antologia, que passeia por vários temas e pelo tempo, Rodrigo elege como um dos preferidos o conto “Dez anos”, que remete à infância do escritor. E recomenda toda a obra do mineiro às novas gerações. “É um autor atemporal, interessa a todo mundo.” 

“Patrimônio brasileiro” 

A cada instante, vê-se que o mineiro de Ituiutaba tem uma legião de admiradores. “Adoro Luiz Vilela”, enfatiza o presidente da Academia Mineira de Letras (AML), Rogério Tavares, para quem o escritor é um mestre dos contos, “preciso, exato e rigoroso”, que não põe uma vírgula fora do lugar, nem a mais nem a menos.





Conhecedor da obra de Vilela, que reúne títulos premiados como “Tremor de terra”, “O fim de tudo” e “Você verá”, os três de contos, e “Perdição” (romance), Tavares coloca o mineiro no panteão de uma trindade literária formada pelo carioca Sérgio Sant’Anna (1941-2020) e o curitibano Dalton Trevisan, de 96 anos. “Temos aí um patrimônio brasileiro valioso”, avalia, citando a união de técnica e arte, própria de Vilela, para mostrar como é saudável beber na fonte límpida da inspiração para matar a sede do leitor com histórias sedutoras e precisas.  

Nesta era tão tecnológica, a história de datilografar os textos se torna um charme a mais na trajetória de Vilela, o que, pelo conjunto da obra, não faz a menor importância. “Vive na terra natal, está no seu ambiente, é um escritor universal, traduzido para vários idiomas, e tem um estilo de escrever bem sofisticado”, diz o presidente da AML.
 

A ‘guerra’ conjugal

Se o leitor conhece apenas o escritor pelos seus contos, não sabe o que está perdendo. Os bastidores reservam passagens bem saborosas, conforme relata o jornalista e gestor cultural Afonso Borges, criador do Sempre um Papo e dos festivais literários Fliaraxá (Araxá) e Flitabira (Itabira). Em 2014, Vilela foi o homenageado em Araxá, na região do Alto Paranaíba.

Borges com a palavra: “Ele me contou, uma vez, que gostava de interpretar seus textos para lhes conferir a extensão da veracidade, especialmente dos diálogos. E resolveu ler, em voz alta (no caso, muito alta), um diálogo entre marido e mulher em plena briga. Usou como cenário o corredor da sua casa, em Ituiutaba, onde disse ter mais eco. Empolgou-se tanto com a história que os vizinhos chamaram a polícia, pensando ser verdade a briga conjugal literária”.





Para Afonso Borges, Luiz Vilela é da geração da qualidade literária: “Não se assemelha a nenhum autor brasileiro. Sua obra está consolidada nos romances e livros de contos que têm, nas suas histórias, a vertente da perenidade. Isolado em Ituiutaba, tornou-se, em vida, um clássico. Poucos têm esta sorte, por mérito, como ele.”

Na terra natal 

O presidente da Fundação Cultural de Ituiutaba, Gilson Aparecido dos Santos, conta que era bem criança, por volta dos 8 anos, quando conheceu o conterrâneo ilustre. “Vilela era amigo do meu irmão, hoje advogado, Gilberto Aparecido dos Santos. Em 1977, quando “Tremor de terra” estava para ser relançado, eu me lembro de ter ficado muito impressionado com aquele que, para mim, é o maior escritor do mundo”, diz Gilson cheio de orgulho.

Ao longo dos anos, o “respeito” pelo escritor foi crescendo e a admiração ganhando proximidade. “Era do teatro amador e me divertia, pois, quando me encontrava na rua, Luiz Vilela brincava me chamando de ‘meu ator-mentado’”.





À frente da fundação vinculada à Prefeitura de Ituiutaba, Gilson mantém acesa a chama da esperança quanto ao retorno do Concurso de Contos Luiz Vilela, cancelado em 2012. Na próxima segunda-feira, adianta, ele terá um encontro com Luiz Vilela para tratar da retomada. “No que depender da fundação, teremos o evento de volta”, avisa Gilson.

Potiguar, filho de um italiano, criado em São Paulo e “mineiro há 20 anos”, o artista visual Elias Zoccoli, de 51, residente em Ituiutaba, também fala com alegria do escritor e ressalta seu caráter reservado, o que não atrapalha a interação. Entre 2016 e 2017, Zoccoli fez 20 obras (acrílicos sobre papel, medindo 42cm x 70cm) para o cinquentenário de publicação de “Tremor de terra”. As pinturas não entraram na edição e foram doadas à Academia de Letras, Artes e Música de Ituiutaba, cidade com 105 mil habitantes, considerada a maior do chamado Pontal do Triângulo Mineiro, quase na divisa com os estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Goiás.

Com a comemoração dos 55 anos de “Tremor de terra” em 2022, está previsto o relançamento da obra, uma boa oportunidade, segundo o presidente da fundação, para que sejam usadas as imagens criadas por Zoccoli.





As boas lembranças são compartilhadas pela atriz Juliana Freitas, formada em letras e também admiradora ardorosa da obra de Vilela, a qual já foi transportada para o cinema, teatro e televisão. 

Em Ituiutaba, há uma década, ela foi proponente de um projeto teatral baseado nos textos do conterrâneo. Foi nesse período que sentiu, bem de perto, a paixão de Vilela pelo trabalho e seu perfeccionismo. “Cria seus personagens a partir do cotidiano, com grande profundidade.” Palavras que ajudam a contar a história do criador de tantas histórias.

“50 contos”
• Luiz Vilela
• Editora Faria e Silva
• 464 páginas
• R$ 86


Em sala de aula 


O encantamento pela obra de Luiz Vilela sempre se fez presente em sala de aula e nos momentos de leitura da vereadora em Belo Horizonte Duda Salabert. Formada em letras e professora de literatura, ela considera o escritor com todos os elementos para cativar os estudantes. "A linguagem é acessível, tem profundidade. Todas as vezes em que trabalhei os textos de Luiz Vilela em sala de aula, os alunos se apaixonaram, por isso recomendo a todos os professores”. Para Duda Salabert, o contista Luiz Vilela está no mesmo patamar de Machado de Assis e Murilo Rubião. "O livro ‘Tremor de terra’ é um marco. Tem um conto, ‘O buraco’, que é perturbador. Vilela tem características machadianas, sempre me encanta.”


Biografia 

Luiz Vilela nasceu em Ituiutaba, no Triângulo Mineiro, em 31 de dezembro de 1942. Começou a escrever aos 13 anos, e, aos 14, publicou pela primeira vez um conto num dos jornais da cidade, o Correio do Pontal. Aos 21, criou com outros jovens escritores mineiros, em Belo Horizonte, a revista de contos Estória e o jornal literário de vanguarda Texto. Em 1967, aos 24, depois de recusado por vários editores, publicou à própria custa, em edição graficamente modesta e de apenas mil exemplares, seu primeiro livro, de contos, “Tremor de terra”, e com ele ganhou, a seguir, em Brasília, o Prêmio Nacional de Ficção, derrotando 250 escritores, entre os quais vários já consagrados, tornando-se conhecido em todo o Brasil. Vilela ganhou também, em 1973, com “O fim de tudo”, o Prêmio Jabuti de melhor livro de contos do ano, e em 2012, com o romance “Perdição”, o Prêmio Literário Nacional PEN Clube do Brasil 2012. Em 2014, seu livro de contos “Você verá” recebeu o Prêmio ABL de Ficção, concedido pela Academia Brasileira de Letras ao melhor livro de ficção publicado no Brasil em 2013, e o 2º lugar no Prêmio Jabuti. 



 


Um conto de um mestre


 “Dez anos”

— E aí?
— Aí eu fui para o terreiro.
— Hum.
— Já contei que eu estava sozinho lá em casa, não contei?
— Contou.
— Papai e mamãe tinham saído.
— É.
— Eu fui dar milho para as galinhas. Depois fui lavar as mãos no tanquinho; aquele tanquinho da lavanderia, sabe qual?
— Sei.
— Lavei as mãos e fui para dentro. Fiquei lá, na sala, olhando uma revista. Então lembrei que eu tinha esquecido de pôr água para as galinhas e voltei lá, no galinheiro.
— Hum.
— Quando passei na lavanderia, ouvi o barulho do chuveiro da empregada. Aí dei uma olhada para lá, mas continuei andando, e de repente levei um susto: eu vi que a porta do banheiro estava aberta. Feito a gente vê nos filmes: o sujeito vê uma coisa, parece que não viu, e de repente arregala os olhos e para; sabe como?
— Sei. E aí?
— O que você acha que eu fiz?
— Você olhou.




— É. Eu parei e dei uma olhada: a porta estava mesmo aberta, não era imaginação.
— Que tanto mais ou menos?
— Assim...
— Então dava para ver muita coisa...
— Dava...
— E aí. Conta.
— Eu cheguei mais perto, andando na ponta dos pés, e escondi atrás do tanque; do tancão, não é do tanquinho, não.
— Sei.
— Aí eu olhei...
— Hum...
— Menino...
— Estava dando para ver?
— Era a mesma coisa de a porta estar aberta inteira...
— Puxa... E ela?
— O quê?
— Ela estava com alguma coisa?
— Alguma coisa como?
— Alguma roupa.




— Gente tomando banho de roupa?...
— Nada?
— Nada, uai.
— Nada nada?
— Nada nada.
— Então deu para ver tudo?
— Tudo.
— Mas tudo tudo ou só tudo de cima?
— Não, tudo tudo.
— Tudo de baixo também?
— Não estou dizendo que tudo?
— Puxa, hem?...
— Tudo.
— Deve ser, hem?...
— Vou te contar...
— É aquela loura mesmo, né?
— É. Eu não sabia que ela era sem-vergonha.
— E ela? Ela não te viu?
— Aí é que eu acho que ela é mais sem-vergonha ainda: ela viu, mas fingiu que não estava vendo.
— Foram uns quantos minutos?
— Uns cinco.




— Isso tudo?
— É.
— E aí, que mais?
— Aí ela fechou a porta; mas, na hora de fechar, ela deu uma risadinha para mim.
— Risadinha? Como?
— Uma risadinha assim... Uma risadinha sem-vergonha...
— E você?
— Eu? Acho que eu fiquei vermelho pra burro; não sabia onde esconder a cara...
— E aí, que mais?
— Aí acabou. Eu fui para o terreiro, dar água para as galinhas. Depois voltei para dentro.
— E ela?
— O quê?
— Depois disso. Você tornou a ver ela?
— Só hoje de manhã, quando eu vim para a aula.
— Ela disse alguma coisa?
— Não. Dizer, ela não disse; mas deu outra risadinha daquelas. Eu morri de vergonha.




— Hum...
— Essa noite eu sonhei com ela.
— Do jeito que você viu ela ontem?
— É.
— Como que foi o sonho?
— Só isso, ela daquele jeito.
— Conta assim mesmo.
— Mas foi só isso, ela daquele jeito. Tudo igual. Só que não teve o pedaço do galinheiro.
— Pedaço do galinheiro? Qual? Esse você não contou, não.
— Não, estou falando as galinhas, quando eu fui tratar das galinhas. Só não apareceu isso no sonho; o resto foi igual.
— Ela estava sem roupa também?
— A mesma coisa.
— Puxa, hem? Quer dizer que você acabou vendo ela duas vezes...
— É...
— Quanto tempo mesmo que você disse?
— O sonho?
— Não; o banheiro.




— Uns dez minutos.
— Você não disse que foram cinco?
— Cinco? Não. Dez minutos.
— Por que você não foi lá em casa me chamar?
— Não dava tempo.
— Você podia ter dado um assobio dos nossos.
— É mesmo, mas na hora eu não lembrei. Na próxima vez eu dou.
— Quando será que vai ser a próxima?
— Não sei...
— Domingo que vem seus pais vão sair?
— Acho que vão.
— Se tiver, você me chama?
— Chamo.
— Mesmo?
— Mesmo.
— Jura?
— Juro.




— Por Deus?
— Por Deus.
— Então está combinado.
 
 Incluído no livro “50 contos” (Faria e Silva Editora)




Obras publicadas 

Romances

1971 – “Os novos”
1979 – “O inferno é aqui mesmo”
1983 – “Entre amigos”
1989 – “Graça”
2011 – “Perdição” 

Contos

1967– “Tremor de terra” – Ganhador do Prêmio Nacional de Ficção, concedido em Brasília (DF)
1968 – “No bar”
1970 – “Tarde da noite”
1973 – “O fim de tudo” – Ganhador do Prêmio Jabuti
1979 – “Lindas pernas”
2002 – “A cabeça”
2014 – “Você verá” – Ganhador do Prêmio ABL de Ficção, concedido pela Academia Brasileira de Letras
 
Novelas

1979 – “O choro no travesseiro”
1994 – “Te amo sobre todas as coisas”
2006 – “Bóris e Dóris”
2016 – “O filho de Machado de Assis”
 

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