Jornal Estado de Minas

ROMANCE

Livro de marroquino narra a difícil vida dos imigrantes em Paris

Uma terra tornada colônia e seus corpos sugados ao serviço imperial. Herança que não se apaga, mesmo após a independência deste agora país. Perversamente, esse povo pretensamente “liberto”, que, imigrante, busca redenção em solo do velho opressor, segue sofrendo em cenas cotidianas de opressão. Corpos descartáveis. Vidas que nada valem.



Também na ex-colônia, a tirania sobre a vida segue encravada no inconsciente coletivo: reproduz-se em camadas diversas no seio da sociedade, seja no racismo estrutural – que subjuga o outro pela cor – seja em relações de gênero – que impõem a vontade patriarcal sobre as vidas femininas – ou sobre as vidas queers, que na íntima expressão de sua identidade transcendem normas binárias. É um passado que se lança ferozmente sobre o presente, em permanente assombro sobre todo o ser que contra ele se insurge. No fim das contas, estará toda a luta sempre fadada à espiral da opressão
 
 
Zahira, Zannouba, Zineb e Allal são as personagens ficcionais de “Um país para morrer” (Nós), do marroquino Abdellah Taïa, escritor em língua francesa, que tem o segundo livro editado no Brasil (o primeiro, “Aquele que é digno de ser amado”, saiu em 2015, também pela editora Nós). A ex-colônia é o Marrocos. O país, a França. Aborda temas universais, que versam sobre os dramas dos povos de ex-colônias sugadas em seus recursos naturais e no uso instrumental dos corpos, deles arrancando a humanidade em defesa de seus interesses econômicos e geopolíticos.

São temas que orbitam todas as histórias de impérios e ex-colônias, mas que também transbordam, contemporaneamente, em guerras e sítio a países no xadrez da política internacional, que forçam os deslocamentos humanos em busca da vida; em guerras híbridas que reforçam divisões de nações e fortalecem a intolerância e o preconceito de gênero, raça, religião e de origem

São histórias furtivas, algumas narradas em primeira pessoa, insidiosas porque sugerem um “maktub” fadado à punição de sonhos e de rebeldias em guerra pela realização individual. Uma fatalidade que parece ser invariavelmente cruel, reafirmando que a vida pouco vale e que o ser humano está presente para cumprir o seu prévio e submisso papel anotado em sua certidão de nascimento, com fortes marcadores de raça, gênero e país de origem. Apesar disso, é uma travessia de grandes momentos, que sugerem a capacidade do ser humano para a empatia e a solidariedade. Assim é Zahira, nascida mulher, marroquina, de família pobre, que culpa a mãe por ter escanteado em um casebre o “gentil e furioso” pai em sua doença – “um leão de circo que de repente envelheceu”.



Mesmo na idade adulta, Zahira não compreende a resposta materna aos anos de submissão ao pai. E se agarra à imagem da casa sem pai, em que vê a mãe “ditadora radiante, em sua majestade”. Condena-a pelo ato simbólico que encerra a dominação do marido; embora, nesse ato, Zahira também tenha se libertado fisicamente de uma condição partilhada na sociedade, a de “mulheres de véu, escravas dos seus maridos covardes, mortas-vivas”. 

Ao mesmo tempo em que Zahira se martiriza por também ter ajudado a tornar o pai invisível, carrega o lamúrio contra a mãe vida adulta afora, mesmo quando empurrada para a prostituição. Trabalha em Paris, onde invariavelmente enfrenta a rotina de humilhações e é brutalizada a serviço de alguns homens. Zahira luta pela vida e pelo ar que respira no violento submundo de Paris. Estará fadada a ser vítima de um antigo amor? Trata-se de Allal, marroquino pobre e preto que por sua cor não conseguira na juventude casar-se com ela. Ao descobrir que Zahira se prostitui, e que é essa a origem do dinheiro que lhe paga o salário de sua miserável existência, decide caçá-la até a morte

“Ela deve morrer. É seu destino. É assim que é. Inútil resistir. É mais forte do que nós. Estou no seu sonho, Zahira. Não há nada que você possa fazer. Eu tomei o controle de tudo em você. Você me escuta? Estou dentro da sua cabeça. Dentro da sua noite. Quer você queira, quer não, a corrida começou. Não posso mais parar. Como tantos outros antes de mim, eu recebi a ordem. Agora, preciso cumpri-la. Estou no seu encalço. Devo confessar que não esperava por isso, de jeito nenhum. Eu não sabia que os Mestres, os djins, também se interessavam pelos homens. São eles que me habitam agora. Uma força me impele. Eu larguei tudo. Eu ando. Corro. Voo. Em sua direção. O maktub vai se realizar, Zahira. O seu maktub.”





Raça, imigração, identidade e solidão são as temáticas que abraçam todas as personagens. A começar por Zineb, tia de Zahira, irmã do pai que acredita assassinado pela mãe. A história dessa mulher retrocede à década de 50, quando o Marrocos, colônia francesa, está a serviço da guerra da França contra a luta pela independência das colônias asiáticas da Indochina. Arrebanha marroquinos para lutar contra a independência dos irmãos asiáticos colonizados pelo império francês.

E toma as mulheres marroquinas para serviços sexuais aos soldados franceses, que, nas palavras do autor, “não gostam das asiáticas”. O espectro de Zineb perpassa a vida de Zahira; mas de fato ela surge na obra, em narrativa onisciente, no último capítulo, em outro tempo histórico, em 1954, em Saigon (atual Ho Chi Minh, no Vietnã). Em diálogo com Gabriel, soldado francês, Zineb lhe revela que pretende perseguir o sonho de se tornar atriz na Índia: tenta convencê-lo a desertar para levá-la. Eis o diálogo: 

“– O Marrocos me vendeu à França, aos franceses.

 – Não fui eu quem quis virar puta, sabe…

 – Eu suponho… que… ninguém quer…

 – O quê? Supõe o quê? Termine a frase…

 – Nada… – Você acha que eu nasci puta? Que eu sempre vivi em Bousbir?

 – Você quer dizer Prosper, imagino.





 – Em Casablanca, dizemos Bousbir. É mais fácil. 

– Bousbir é uma casa fechada em Casablanca? 

– Mais do que isso. É um bordel a céu aberto. Todos os condenados do Marrocos acabam lá, homens e mulheres. 

 – E todo mundo se prostitui lá?

 – Todo mundo. Enfim, enquanto você ainda é consumível.”

Zineb desaparece com o fim do romance. Terá sido o seu maktub perverso

Outro personagem central da trama, o argelino Aziz – que foi um “garotinho que não se sentia um garoto”, mas com as irmãs “se abria, ria, dançava, ia ao céu”. Aziz passa pela cirurgia para se tornar Zannouba, amiga de Zahira e também prostituta em Paris. O trauma da tão sonhada e desejada forma física, contudo, não lhe sossega a alma. “Mesmo quando faço xixi, não escuto os barulhinhos delicados que eu esperava. Em vez disso, um jato de água forte. Ele sai forte. Forte como antes. Não parece nem um pouco uma mulher fazendo xixi. Não. Desespero grande. Vou ao banheiro não sei quantas vezes por dia. Tento dar concretude à minha ideia de mulher através desse ato cotidiano, múltiplo. Tento recuperar a memória da minha mãe urinando livremente, sem nenhum constrangimento. Reencontrar aquele som característico. TSSSSSTSSSSTSSSSS. Impossível! Nunca vou conseguir.” 

Será vã a luta? Abdellah Taïa indica, mas não vaticina. Deixa a cada qual, até onde seja possível, o alcance da caneta de seu próprio destino.

Entrevista
Abdellah Taïa 
Escritor

“O Ocidente não é para todos”

Como se inspirou para o romance “Um país para morrer”?
Em primeiro lugar, não consigo escrever sobre um lugar que não co- nheço. Sempre escrevo sobre um lugar que conheço, de meu entorno, do mundo das minhas relações. Não posso escrever sobre pura ficção. Então, em certo sentido, é autobiográfico o que faço, mas não apenas sobre mim, também retrata as pessoas com quem convivo. Eu me lembro muito bem de quando cheguei em Paris, em 1999, ainda tomando consciência da grande distância entre o sonho e a realidade, do modo que eu, um imigrante muçulmano, entrava para uma “categoria” sobre a qual não tinha a menor ideia.



E você começa a interagir com pessoas que de alguma forma se parecem com você, mas que estavam vivendo em Paris muito antes de você, e percebe o que a experiência da imigração fez com elas. O dia em que decidi escrever este romance foi naquele ano, quando vi uma mulher, sentada na escadaria do monumental prédio de um banco francês – Le Credit Lyonnais – que tinha entre 54 e 55 anos, e estava lá, sozinha, perdida, completamente destruída pela experiência da imigração, do exílio, e essa mulher se parecia fisicamente com a minha mãe. Fiquei muito tocado e me disse: “Um dia, se eu for bem-sucedido como escritor, preciso escrever sobre essa mulher, essa experiência do exílio e o que Paris e o exílio fazem com essas pessoas”. O Ocidente não é para todos. O Ocidente pode destruir você e transformá-lo na sombra de si mesmo. É um romance extraído inteiramente da realidade e todas as personagens são pessoas que se fizeram ficcionais

Há questões universais abordadas no romance. Imigração, racismo, questões identitárias de gênero, além de uma certa crença na fatalidade do destino. As personagens lutam contra a opressão, mas a narrativa, embora fique em aberta, sugere um “maktub” infeliz. Qual a chance de as suas personagens alcançarem a felicidade?
O romance começa com todas as personagens conscientes de que Paris e o Ocidente estão ali para explorá-las, que a França não dará a chance que merecem. Elas sabem que, sob essa perspectiva, são “perdedoras”. Mas eu, como escritor, as trato como os grandes heroínas, ainda capazes de sonhar e de construir uma outra forma de viver, que é muito solidária entre si, uma outra forma de sonhar, de fazer sexo, de amar. São pessoas que estão desapontadas, mas não desistem do ideal da vida.

Elas não serão bem-sucedidas no sistema capitalista ocidental, mas no sistema de valores da vida são grandes seres humanos. Zahira se sacrifica para dar sexo gratuito aos imigrantes, que são tratados de forma ainda mais cruel do que ela o é. E Zahira está lá para Aziz, que se torna Zannouba, e para o rapaz iraniano, que está no exílio. Elas estão conscientes das dificuldades e continuam capazes de sonhar e compartilhar momentos de felicidade e de amizade. 





A posse pelo uso da força sobre o corpo e o desejo do outro é um tema recorrente no romance e também relacionado ao colonialismo. A história de Zineb, levada ao Vietnã para fazer sexo com as tropas franceses, toca neste ponto: marroquinos eram recrutados para lutar e morrer na guerra de independência da Indochina, que se encerra em 1954. A sua família, no passado, passou por essa experiência?
Sim. O primeiro marido da minha mãe foi mandado pelos franceses ao Vietnã lutar pela França na guerra de independência das colônias. Ele foi morto e enterrado lá. À época, a França indenizou a família do marido da minha mãe, mas esta rejeitou a minha mãe, que era a viúva e também tinha uma filha dele. Depois de receber a indenização, a família do falecido colocou as duas na rua. As consequências do colonialismo francês estão, portanto, na minha família. E a minha mãe sempre foi uma pessoa muito forte, dura, muito focada em   construir uma família, ter uma casa, em fazer os filhos estudarem. Ela teve nove filhos. Quando cresci e amadureci, compreendi que ela não teve outra opção. 

O compositor brasileiro Caetano Veloso afirma em uma de suas letras que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Poderia nos contar um pouco de como o senhor se constitui em meio aos conflitos de valores entre ser uma pessoa gay e muçulmana, ao mesmo tempo em que um escritor de língua francesa, que vive em Paris, país que colonizou e explorou o Marrocos?
A minha família tem origem muito pobre, vem do interior do Marrocos. Meus pais fizeram muitos e muitos anos de sacrifícios para que eu pudesse estudar e me desenvolver. É verdade que não me protegeram enquanto uma pessoa gay, mas naquela época, mesmo na França, não existia a cultura para educar as pessoas quanto à diversidade. Mas agora entendo que há certas questões de sobrevivência que os assoberbava e talvez, eles não tivessem tempo para os pro- blemas de uma pessoa como eu. E, como uma pessoa gay, a minha inspiração para a luta vem de minha mãe, que me transmitiu o sentido de sua força. Era ela quem negociava com empreiteiros que construíam a nossa casa, com a administração local, fez enormes sacrifícios para que eu pudesse ir à universidade.

A língua francesa, no Marrocos, está acessível apenas às elites econômicas e intelectuais, que a usam para se distinguir do resto de nós. Até hoje, quando você sabe apenas o árabe no Marrocos, não é muito considerado. Há uma discriminação social clara em consequência dessa herança do colonialismo francês. Mas desde cedo compreendi que precisava aprender a língua francesa, o que fiz na Universidade de Rabat, numa tentativa de alguma forma superar esse bloqueio social, quase tirar da França um pouco do que nos foi retirado enquanto colônia. Quando descobri que desejava ser escritor, entendi que deveria escrever sobre todas as vivências que experimentei.



O que vivenciei com a minha mãe, as minhas irmãs, a vizinhança, como imigrante em Paris, sobre isso é que deveria escrever. É verdade que não me compreenderam como uma pessoa gay, seja porque estão em um contexto social, religioso que torna isso mais difícil. Mas essas pessoas são parte de mim, são também um pouco de mim, do que sou. Então, as trouxe para a literatura, em todas as dimensões, política, social, existencial, as vivências que partilhei com elas e que estão em mim.

"Um país para morrer"

De Abdellah Taïa
Tradução de Rachel Camargo
Editora Nós
160 páginas
R$ 52

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