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Estado de Minas

Artigo: pandemia revela o lado predador e egoísta de brasileiros

Em ensaio, Graça Ramos relaciona o conceito de antropofagia lançado por Oswald de Andrade com o 'canibalismo' dos irresponsáveis da pandemia


07/05/2021 04:00 - atualizado 07/05/2021 11:47

 

Graça Ramos *

Especial para o EM

 

Ao saber que várias instituições paulistas se uniram para realizar discussões relacionadas às celebrações do centenário da Semana de Arte de 1922, uma pergunta insiste em se fazer presente. Indago sobre a pertinência de um dos principais efeitos teóricos da semana, o Manifesto Antropófago, lançado em 1928, por Oswald de Andrade. Penso que, no lugar de “só a antropofagia nos une”, como pregava o escritor, é o canibalismo que nos define. 

 

Entendida como a nossa capacidade de devorar o inimigo e deglutir a cultura alheia para assim produzir algo genuíno, a antropofagia ecoou como vetor, espécie de matriz para nossa produção cultural e, em campo ampliado, como marca identitária dos brasileiros. Aqui e ali, voltamos a Oswald, no alegorizar da antropofagia para alimentar ideais de sermos seres conscientes, críticos transformadores daquilo que absorvemos. Será ainda possível sermos lidos de tal maneira?

 

A indagação alimenta-se de notícias sobre o país durante a pandemia de COVID-19. A chamada realidade, essa que nos atormenta ao deixar visível nossa barbárie cotidiana, mostra milhares de pessoas à espera de leitos em UTIs em todos os estados, e, ao mesmo tempo, festas ocorrendo com naturalidade atordoante. Mais de 400mil mortos. E o não-governo perverso e pervertido, cada vez mais incentivador do caos, ainda apoiado por 30% da população. Hóspedes somos da “Casa Verde”, de Machado de Assis, que parece ter antevisto o delírio coletivo.

 

Na certeza de que estamos nos matando uns aos outros – em grande parte pelo efeito da negação e falta de orientação governamental para adoção individual e coletiva de medidas protetivas –, trago à cena leitura realizada nos 1990: “O canibal: grandeza e decadência”, de Frank Lestringant. O autor recupera a ideia do Brasil como “país dos canibais”, em obra que explicita a gênese da ideia da antropofagia e seu uso por diferentes autores.

 

No tecer de leituras, desenho perfil de Oswald impregnado por visão romântica da noção da antropofagia. O romântico tem a ver com as elaboradas teorias dos fundadores do estilo, Friedrich Schiller à frente com sua ideia de que somos humanos na medida em que brincamos=criamos. Mas pesa muito o sentido popular de romântico, entendido como aquele que expressa olhar sentimental do mundo. No caso de Oswald, a valorização zombeteira do rito praticado por alguns dos nossos povos originários o levou a estendê-lo emotivamente aos brasileiros, sem jogar metaforicamente com tensões inerentes ao país dos “filhos do sol”. 

 

Releio o manifesto e revejo nele proximidade com ideias como as do clérigo calvinista Jean de Léry, em “História de uma viagem feita à terra do Brasil”, lançado em 1577. Aquele que, conforme Lestringant, nos forneceu “uma imagem indulgente e quase positiva do canibalismo tupinambá”, como ação ritual de comer o inimigo para transformar aquilo que tem de valoroso. Sim, há também a influência de Michel de Montaigne com seu ensaio “Dos canibais” (1580), que enxergou crueldade, porém considerou tais práticas como sendo um canibalismo de honra. Mas Montaigne, antes de tudo um irônico, desliza tanto os sentidos que, no fundo, tendemos a desconfiar do que lemos, pois parece estar a falar mais do velho habitat europeu do que dos habitantes do Novo Mundo. 

 

No adorável burlesco de sua linguagem telegráfica, Oswald interpreta características peculiares de nossa sociedade. Devolve-nos à ideia do matriarcado, valoriza a herança indígena, condena as galimatias, os formalismos com a língua. Projeta fantasia de sociedade divertida, criativa, crítica ao passado colonial. Leitura, no entanto, que evita qualquer menção, por exemplo, ao passado escravocrata, espécie de canibalismo estrutural.

 

A começar pelo título, Oswald se negou a nos enxergar mais próximos do canibalismo, esse devorar do outro pela simples destruição, sem qualquer marca de consciência ritual. Foi provocador, sim. Desestabilizou o olhar cultural, também. Propôs um projeto coletivo para o país – talvez o único a nos encantar – mas, é preciso lembrar: não apontou a violência voraz característica de grande parte de nosso país, obstáculo a que sejamos sociedade minimamente conectada na defesa de interesses comuns. Violência histórica, agora pandêmica.

 

Nesse sentido, poeta muito anterior a Oswald, mais atento à amplitude multifacetada do coletivo brasileiro, Gregório de Matos nos descreveu com ferina fidedignidade: “Todos somos ruins, todos perversos, /Só nos distingue o vício e a virtude/De que uns são comensais, outros adversos”.

 

Nos dicionários, antropófago e canibal apresentam significações aproximadas. No entanto, a segunda palavra ganha mais explicações. “Aquele que come carne humana”, resume o conceito do ser antropófago. “Animal que come outros da mesma espécie”, diz o verbete relativo a canibal, com o acréscimo de que, figurativamente, significa homem cruel, bárbaro, feroz. 

 

Palavras transformam-se. Constroem percursos, se tornam quase narrativas e fazem história. Graças a Oswald, nos acostumamos a pensar a primeira, a antropofagia, como exercício de uma barbárie bela, envolta de potência criadora, instigadora de erótica festiva. O culto transubstancial de elogio à coragem, furor intenso e charmoso que nos eleva à condição de imaginativos, criativos e, claro, sendo um ritual coletivo, interligados. Conexão que poderia nos tornar seres solidários. 

 

O comportamento do país durante a pandemia do coronavírus reforçou o retrato de brasileiros como predadores vorazes, egoístas pouco afeitos à responsabilidade social. Como muitos na população permanecem a apoiar o elemento condutor do caos, a pouca adesão a ações essenciais ao controle do vírus – o não uso de máscaras, a reação negativa aos necessários lockdowns – tende mais à ideia do deletério do que para os sentidos totêmicos da antropofagia à moda de Oswald.  

 

Nesse retrato adverso, estamos recuando em generosas práticas sociais consolidadas. Por exemplo, o Programa Nacional de Imunizações, grande pacto coletivo pela vida, vem sendo desprezado. E, assim, nos aproximamos cada vez mais do sentido primeiro da palavra canibais=cães, seres terríveis que tudo comem. É como se não conseguíssemos nos organizar, seguir o exemplo de nossos povos originários, que tanto inspiraram Oswald, e agir em torno de um objetivo comum, construtivo. Nas aldeias, até hoje a confiança comunitária triunfa e é desse norte que andamos necessitados.

 

Sempre fomos sociedade em que aquilo que há de belo, forte e inventivo se produziu nas gretas existentes em espaços de vitalidade. Fissuras generosas abertas por parcela de nossas gentes, que, aí sim, conseguem praticar a antropofagia sugerida por Oswald. Celebrações da vida refletidas nas diferentes expressões artísticas. Infelizmente, nesse tudo morder e destruir que recrudesceram na pandemia, os atos de criação, de ludicidade, que para Schiller definiam o humano, se tornam ainda mais rarefeitos, pois soterrados pela depressão emocional e econômica. 

 

Não é fácil escrever tal retrato, embora tenha me aproximado dele, há muitos anos, quando estudava a escultura de Maria Martins (1894-1973). Comprovei que a rejeição à estética produzida por ela, proferida por grande parte da crítica brasileira dos anos 1950 – quando era louvada no exterior –, se devia à violência de seu discurso plástico sobre o desejo de devorar o outro. Para além do sexual, aqueles seres terrivelmente agressivos, mordedores, dotados de garras, lidos no contexto atual, parecem estar a expor algo mais amplo: falam do apetite destruidor de tudo e todos, incluída a natureza.

 

Sinto muito: perdeu, perdemos, querido Oswald. Não vingou sua ideia de união, de identidade, que era a celebração pelo banquete antropofágico. Se não dermos um basta na lógica canibal, o futuro não será agraciado com a alegria da prova dos nove, muito menos com novas dentições ou com tamanduás-bandeira a papar formigas. Será fulgurante em dor. Agonizaremos em praça pública. Exalaremos para o mundo destruição e morte, apenas e somente. 

 

A jornalista Graça Ramos é doutora em história da arte e autora de, entre outros livros, “Ironia à brasileira: o enunciado irônico em Machado de Assis, Oswald de Andrade e Mario Quintana” (Pauliceia)

 

 

Pagu: rebeldia em primeira pessoa

 

Das mulheres ligadas à década inaugural do Modernismo brasileiro, Patrícia Galvão, a Pagu (1910-1962), permanece como a rebelde, provocadora de regras sociais e desafiadora do patriarcado. Diferencial, muitas vezes, vinculado ao seu não-pertencimento à família rica – ao contrário de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e às pouco estudadas Regina Gomide Gratz e Zina Aita. Aos desejosos em conhecê-la, “Pagu: autobiografia precoce” oferece retrato dos primeiros e intensos 30 anos da escritora, tradutora, crítica de teatro, desenhista de quadrinhos e militante política de esquerda.

 

O livro convida a mergulho em escrita muito aproximada das construções literárias do contemporâneo. Todo costurado em associações metafóricas (“recebe as minhas mãos molhadas desta água do meu mar represado nestas pálpebras”), embrenhado em apontar desconformidades do real, mas sempre no tom confessional. Retrato íntimo que se desdobra em testemunho social de uma época. Nesse duplo movimento, os arranjos de Patrícia Galvão transformam o pertencente ao gênero textual, uma carta íntima, em ato de criação poética de uma mulher apaixonada que se afirmar com todas as suas contradições e belezas. 

 

Expurgo de emoções, revisão de compromissos sociais e políticos, lapidação da palavra, o apresentado é escritura que pulsa e desarticula para reorganizar a autopercepção e a leitura do mundo. Se conforme Márcio Seligman-Silva, “toda autobiografia é autotanatobiográfica”, a produzida precocemente por Patrícia Galvão também se mostra decisão inteligente de deixar para o futuro o relato em primeira pessoa, dificultando que outras vozes falassem por ela, em especial, após sua morte. 

 

A autonarrativa expõe uma vida de enfrentamentos: iniciação sexual precoce; violência paterna; realização de aborto; tensões com o comportamento sexual livre do primeiro marido, o líder modernista Oswald de Andrade; machismo da esquerda que a via mais como corpo do que como ser pensante; vivência da depressão. Tudo contado de maneira corajosa, sem subterfúgios ou vitimizações.  

 

Patrícia Galvão revela ainda sua angústia e a negação da noção tradicional de maternidade e expõe arranjo familiar com Oswald fora de padrões tradicionais – é ele quem cuida do filho deles, Rudá –, enquanto ela milita e escreve. Mesmo separados, constroem vínculo de amizade. Em relação a Oswald, fica exposta a influência que o relacionamento exerceu na decisão dele de se aproximar da militância política de esquerda. 

 

O texto agora publicado pela Companhia das Letras já havia recebido edição anterior, no começo dos anos 2000, pelo selo Agir, retirando-o do ineditismo sob o título “Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão”. Apesar da disparidade dos títulos, o conteúdo central é o mesmo. Trata-se da carta da escritora endereçada a seu segundo companheiro, Geraldo Ferraz, começada na prisão em que ficou interna por cinco anos e concluída já em liberdade, no ano de 1940. 

 

Se, na primeira versão, havia a apresentação feita pelos dois filhos da escritora, Rudá e Geraldo Galvão Ferraz, na atual aparece somente a letra de Patrícia – finalmente autorizada a ser publicada sem intermediários masculinos a apresentá-la. Outro diferencial vincula-se à publicação, na edição recente, de texto também de autoria da escritora, desencadeado por uma visita de Rudá e transformado em crônica no final da década de 1940. 

 

No uso de sensíveis metáforas poéticas, esse texto funciona como preâmbulo à carta. Porém, pela não separação entre os dois tecidos, parece fazer parte da epístola, pois a quem lê não são fornecidas informações sobre as circunstâncias envolvendo a primeira obra. Esclarecimento que poderia constar junto aos parágrafos inseridos na quarta capa, restritos à explicação de como se deu a fabricação da carta e sobre a importância de Patrícia Galvão. 

 

O livro atual, em pequeno formato, traz outro diferencial em termos editoriais: na capa, em cor vermelha, apresenta o nome PAGU em tinta preta. As duas primeiras letras separadas das outras, na vertical, pelo desenho inacabado de um olho. Jogo gráfico proposto pela designer Elaine Ramos que evoca a forma de desenhos realizados por Patrícia, especialmente quando representava bocas e cabelos e os saturava de tinta preta. Somente na lombada inscreve-se o título “autobiografia precoce”. 

 

A edição sofisticada reapresenta, em série, nas folhas de guarda, esse desenho do olho, a avisar a posição de voyeur assumida pelos que irão se aventurar na leitura. Como se o formato do objeto livro estivesse a nos dizer que o acesso a relatos autobiográficos produzidos no formato carta, direcionados inicialmente a íntimo interlocutor, transformam a nós, leitoras e leitores, em espiões da existência alheia. No caso de Patrícia Galvão, uma vida que vale a pena ser olhada com atenção, pois poucas ao longo do século 20 conseguiram se fazer mulher como ela. (GR)

 

 

12 de novembro de 1940

 

Hoje não existe passado. Estou esperando você, meu Geraldo. Corremos aspraias. Essas praias de sombra, sob o luar que não parece luar. O meu luar de morte e nervos, da noite em que eu procurava. Eis aí a minha noite. E a tragédia preconcebida, decepcionada, com essa alegria súbita que tem ainda muito da falecida angústia, mas que, contrariando o desejo formado há muito tempo, tem muito, muito de vida. Estarei grávida? Estarei grávida? Quererei estar grávida? Isso é a morte da morte e eu talvez queira a morte. Mas não posso negar a oposição desse transbordamento de esperança. “A paisagemcontraditória do meu ser...” Aquelas florezinhas que você chamou espectrais.

Mas você reparou que a luz do sol é uma féerie? Parece um jardim iluminado dos sonhos da minha infância, com lanterninhas brancas opacas.

 

“Pagu: autobiografia precoce”

 

  • Patrícia Galvão
  • Companhia das Letras
  • 144 páginas
  • R$ 59,90 
  •  

 


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