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Estado de Minas

Livro reúne as palavras inquietas de Sérgio Sant'Anna

Com organização de André Nigri e Gustavo Pacheco, "O conto não existe" (Cepe) traz entrevistas e ensaios do autor de "O voo da madrugada"


07/05/2021 04:00 - atualizado 07/05/2021 11:34

Sérgio Sant'Anna em Belo Horizonte no início dos anos 1980: demonstrações de humor e refinamento nas entrevistas e ensaios ao longo das décadas(foto: arquivo em)
Sérgio Sant'Anna em Belo Horizonte no início dos anos 1980: demonstrações de humor e refinamento nas entrevistas e ensaios ao longo das décadas (foto: arquivo em)

 
 
Sérgio de Sá *
Especial para o Em

A certa altura de uma entrevista, Sérgio Sant'Anna traça a diferença entre o escritor seminal e o escritor terminal. Oswald de Andrade é do primeiro tipo. Estimula, impulsiona ideias. Guimarães Rosa, da segunda estirpe. “É tão perfeito que fechou o próprio caminho.” Roland Barthes fez distinção parecida, entre o texto legível e o “escrevível”. A pergunta que não quer calar um ano depois da morte do autor de “A tragédia brasileira”: o que resta entre a imperfeição criativa e a genialidade enclausurada?

Sant'Anna faria 80 anos em 30 de outubro próximo. Morreu aos 78, em 10 de maio do ano passado, uma das mais de 400 mil vítimas brasileiras da COVID-19. O jornalista e escritor André Nigri e o diplomata e escritor Gustavo Pacheco vasculharam arquivos para selecionar o material reunido no livro “O conto não existe” (Cepe). Dez entrevistas – em texto corrido ou no padrão pergunta-resposta – e dez resenhas e ensaios, escritos e publicados entre 1969 e 2020, convidam ao reencontro delicioso com um mestre da narrativa. 

Segundo os organizadores, são “textos que resistiram melhor ao tempo, tanto por trazer informações preciosas sobre a vida e obra do autor, no caso das entrevistas, como por revelar sua face de crítico e ensaísta”. Não que a biografia de Sant'Anna e o manejo na arte de ler a realidade na vida e nos livros fossem totalmente desconhecidos. Estavam, de uma forma ou outra, na obra. Aqui se apresentam em modo, digamos, clássico, dentro da tradição dos formatos que expõem o pensamento em contrato não-ficcional.

Mas com muita experimentação e molecagem, para usar termo caro ao escritor. As entrevistas não parecem esconder sombras de dúvidas. Diretas, sinceras. As resenhas e os ensaios são soltos, frouxos, mais livres do que o habitual. Sant'Anna escreve sem qualquer frescura teórica, com um frescor comunicativo que se faz compreender em larga escala, de dar uma inveja danada. Do exame minucioso – no calor da hora – do livro “Lúcia McCartney”, de Rubem Fonseca, a divagações teóricas sobre “a arte de não escrever”. 

Não à toa o advérbio “não” aparece com certa constância, para se transmutar em substantivo. A biografia afetiva e intelectual revelada em “O conto não existe” ressalta essa figura que se colocou em negatividade como precaução e potência para encarar vida e escrita, dois enfrentamentos cotidianos. A barra sempre foi pesada, oscilante entre euforia e melancolia. São assim os textos críticos, são assim as respostas nas entrevistas. Sant'Anna preocupa-se com o diálogo, a fala, a comunicação. Conhece seus limites.


Formas de inventar linguagem


A entrevista, por exemplo, não está livre da instabilidade. “Tudo é de certo modo ficção (uma frase de Manfredo Rangel). E dar entrevistas é também uma forma de se fazer ficção. Uma imagem arbitrária e nebulosa que eu tenho do mundo em determinado instante”, escreve o autor de “Notas de Manfredo Rangel, repórter”. Em perfil publicado originalmente na revista “Piauí”, o melhor e mais completo texto sobre Sant'Anna no livro, Bernardo Esteves elabora um personagem-escritor deliciosamente atormentado, que vive em e para a literatura. Mas sempre consciente de que dizer e escrever são formas de inventar linguagem. 

A antologia deixa passar eventual imprecisão dos relatos jornalísticos que abrem ou entremeiam as entrevistas. Há desacordo sobre o tempo de Sant'Anna em BH, a cidade que lhe proporcionou a entrada “no universo das letras”. Diz texto de 1969: “Vive em Belo Horizonte há dez anos”. “Reside em Minas desde 1960”, aponta outro. “Em 1958, passou a integrar a primeira diretoria da Usiminas e nos mudamos para Belo Horizonte”, conta o próprio escritor sobre o pai. “Nasceu no Rio, mas viveu em Belo Horizonte dos 17 aos 34 anos.” E ainda: “deixou de frequentar o hipódromo ao se mudar para Belo Horizonte, aos 17 anos, mas teve uma recaída quando voltou ao Rio de Janeiro, 18 anos mais tarde”. 

Ao final, o que mais importa é saber que o escritor carioca-mineiro fez seu percurso de produção literária muito impressionado pelo olhar do tempo e pelo acolher do espaço circunstancial. O leitor verá a presença de repetidos influenciadores (Rosa, Clarice Lispector), de elogios e senões honestos aos pares (Fonseca, Dalton Trevisan), de reverências insuspeitas, nas artes plásticas e na literatura (Duchamp, João Gilberto Noll). Verá um pensador em permanente simplicidade e com opiniões tão bem-humoradas quanto refinadas.

No conjunto, “O conto não existe” é o que há de mais completo sobre a história de vida e obra de um dos nossos mais importantes escritores, um de nossos destacados leitores. Não é pouco. Mesmo que ele ainda mereça muito mais. Porque o autor de “O homem-mulher” fez da perfeita formulação de histórias semente para a criação livre na literatura brasileira contemporânea, em enquadramentos e ideias. Vida longa a Sérgio Sant'Anna.

* Jornalista e professor na Universidade de Brasília, Sérgio de Sá é autor, entre outros textos, da dissertação “Espetáculos literários: Sérgio Sant'Anna e mass media” (UFBa, 1999) e do ensaio “A literatura não vem do nada: a permanência de Sérgio Sant'Anna” (Revista Z Cultural, 2020).
 

Entrevistas

André Nigri e Gustavo Pacheco 
organizadores
 

“Leituras e análises abrangentes”

 
Quais critérios usaram para selecionar as entrevistas e ensaios?
André Nigri - Nossa intenção com as entrevistas foi cobrir todas as fases da trajetória do Sérgio. A primeira entrevista é anterior ao lançamento do livro de estreia; e a última foi publicada três dias depois da morte do autor.  
 
Gustavo Pacheco - Levantamos mais de 60 entrevistas, perfis, ensaios e resenhas publicados ao longo de 50 anos de carreira literária do Sérgio. Na hora da seleção, buscamos não só cobrir todas as fases da carreira do Sérgio, como o André mencionou, mas também escolher os textos que tivessem resistido melhor ao tempo, que não soassem datados, que pudessem ser lidos com proveito e prazer pelos leitores de hoje. 
   
Qual descoberta mais chamou a atenção de vocês?
Nigri - A abrangência das leituras e análises. Sérgio medita sobre Otto Lara, Murilo Rubião e Machado de Assis, entre outros, em textos calibrados com elegância, ironia e irreverência, características de sua obra ficcional. 

Tanto em entrevista como em ensaio, Sant'Anna diz que a literatura “atua lentamente, não é imediatista”. E, no caso da literatura do homenageado no livro, o tempo ajudará a valorizar as diversas facetas da escrita? 
Pacheco - Há autores que têm muito o que dizer sobre uma determinada época, mas depois perdem relevância; não é o caso do Sérgio. Quando você lê os contos que ele escreveu no final da década de 1970, por exemplo, eles soam tão frescos como se tivessem sido escritos hoje. Não tenho a menor dúvida de que, com o passar do tempo, a reputação do Sérgio será ainda maior do que é hoje.
 
Em um dos ensaios, Sant'Anna se queixa que o romance brasileiro “anda tímido e ruborizado”. Ele rompeu com essa timidez e esse rubor?
Nigri - O ensaio “A propósito de Lúcia McCartney” – referência ao livro de Rubem Fonseca – foi publicado em 1970 e revela o caminho que o Sérgio trilharia. Na esteira de Rubem e Dalton Trevisan, ele rompe não apenas com a timidez formal de parte da literatura da época como a transfigura estética e tematicamente, incorporando a cultura de massas, por exemplo, como é o caso do futebol e da televisão.    
  
Como as reflexões de Sant'Anna, nas entrevistas e ensaios, ajudam a iluminar a obra ficcional do autor?
Pacheco - Não é comum que um autor do calibre de Sérgio Sant'Anna se debruce de maneira tão explícita e detalhada não só sobre sua própria obra, mas também sobre a obra de seus contemporâneos. O Sérgio foi professor por muitos anos, e talvez por isso ele tenha tido tanta habilidade para fazer essas análises. Esse olhar “de dentro”, de alguém que está implicado naquilo que comenta, é muito diferente do olhar de um crítico ou estudioso, e permite que tenhamos uma visão mais complexa tanto da ficção do próprio Sérgio como de outros autores brasileiros que ele comenta. 
 

“O conto não existe: Sérgio Sant'Anna”

  • Entrevistas e ensaios (1969-2020). Organização de André Nigri e Gustavo Pacheco
  • Cepe Editora
  • 228 páginas
  • R$ 45 


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