Jornal Estado de Minas

POESIA

Cantos de incontáveis manhãs em nova obra de Simone Andrade Neves

A poeta Simone Andrade Neves chega ao quarto livro. São delas as obras “O coração como engrenagem” (1994); “Corpos em marcha”, publicado no Brasil pela editora Scriptum (2015) e na Itália pela Edizione Kolibris (2020); “Missa do envio – Bandeira do Divino”, em parceria com o músico Chiquinho de Assis, pela editora Casa Impressor de Almeria (2017), e o recém-lançado “Terrário” (Selo Demônio Negro), no qual reúne 27 poemas e uma série em dísticos portando ambientes verticais que se comunicam na composição de muitos universos, avançando sua escrita até um inventário de peixes, pássaros, árvores e músicas.



Nascida em 1974, em Belo Horizonte, e moradora de São Bartolomeu (pequeno distrito de Ouro Preto), Simone nos faz crer que a poesia que nos cerca protege e assusta na mesma medida em que nos abençoa. Ela consegue sintetizar, em seus versos, mil sons e mil signos que se dispersam em todos os sentidos como sons de sinos que, em espirais, se dissipam, aos poucos. “Os sinos guardam/e aguardam o mundo.” 

A autora amplia ao infinito o conceito e a função poética das janelas, por exemplo. “Se a vista é para o adro/a janela é oratório.” A religiosidade ganha, nessa poesia invulgar, outros e maiores sentidos quando cresce a aura do mais puro mistério. Ter nascido em Minas só faz bem à voz da poeta. É que “na beira do sagrado/o mal não convém”, ela sugere. 

Eis a função da poesia, diante do breu, dos abismos e dos percalços inevitáveis. A poesia de Simone nos faz crer que a literatura é algo maior. A poesia é plural para o além do medo e do precário. Aliás, ela, a poesia, nos afasta do duvidoso, do incerto, dos descontínuos que nos definem um tanto, mas que nos atormentam em última análise.
 
Simone domina o seu lapidar de versos com sobriedade, mas sem perder nunca o humor, a alegria e a leveza. Os poemas do livro não seguem em linha reta. A cada verso, a cada poema surgem novas nuances, musicais, barrocas, que Simone nos oferta como quem domina o seu ofício, a sua arte de fazer alquimias. 





Simone utiliza metáforas, porque assim exige a poesia, uma poesia polifônica. O seu marchar, o seu leve caminhar diz muito sobre incertezas, sobre a beleza em si, da própria marcha, e se confunde ao ilimitado destino do fazer poético, da caminhada a que o poeta se impõe, sem eira nem beira, sem destino, mas até o destino, contudo. Simone acusa e ao mesmo tempo defende o vento, a alma dos gatos, os ursos-polares, os “cantos de incontáveis manhãs”. 

O abismo e  a travessia

Na poesia de Simone, versos soltos já são, em si, poemas completos: “O abismo foi só um modo de atravessar.” A poeta nos oferece mil imagens concentradas, juntas, mil sugestões e possibilidades. O abismo ganha, assim, múltiplas funções. Cabem questionamentos, e ela pergunta, com o coração cheio de infâncias: “Como chegaram ao mar as estrelas?”. Um olho no peixe, outro no gato, Simone, esperta, capta os sons, os brilhos de relâmpagos nos seus poemas. Arco e flecha, Simone dá um tiro certeiro no cerne do inexpugnável, “quando o sentir é alvo/o céu expõe as estrelas”. Seus poemas soltam faíscas. 

Nesse carrossel, Simone se entrega e leva junto o leitor, propondo um jogo de vertigens onde prevalece sempre a alegria. A literatura é, sem dúvida, um dos nossos melhores e mais perigosos brinquedos. A poesia de Simone é feita de enigmas que, quando e se decifrados, transformam o nosso modo de enxergar o mundo. Mas, mesmo assim, Simone ressalta que o mesmo mundo continua, para o bem da poesia, intangível.





O terrário do título do livro pode ser um miniecossistema fechado autossustentável, em que as plantas fazem a fotossíntese. Terrário também pode ser uma instalação provida de terra, saibro, rochas, plantas etc., para criação ou exposição de feras, répteis, roedores, etc. Pois bem, o terrário de Simone abarca tudo isso e o mundo. Salto de baleia no meio do mar, do meio do nada, enxames de pirilampos, os poemas de Simone surgem com a força e a graça das vidas que já nascem fortes e luminosas

Trata-se de um apropriar-se da percepção do que existe de anárquico na aparente simplicidade das coisas, do silêncio dos adros, do som anacrônico dos sinos. Um apropriar-se, um render-se ao mistério que atravessa, que mora em tudo. Assim é a poesia de Simone, estranha e paradoxal. Os poetas também são cúmplices do indizível.

Terrário
• Simone Andrade Neves
• Demônio Negro
• 124 páginas
• R$ 45
demonionegro.com.br

ENTREVISTA
Simone Neves

“Drummond é minha referência maior”


Como você avaliaria a sua trajetória? O que mudou do seu primeiro livro para este “Terrário”?
Os pouco mais de 20 anos sem publicar um livro foram dedicados à leitura, ao aprendizado, exercitando a escrita e reiterando a indagação deste caminho, até 2015, com o lançamento do “Corpos em marcha”. A palavra evolução me incomoda, mas é inconcebível que a minha escrita não tenha evoluído ou se deslocado com outra identidade ao longo dos anos, dos experimentos e muitos rascunhos jogados no lixo. Sinto que ganhei firmeza na mão, a linguagem foi se estabelecendo e ditando os caminhos, a hora de publicar, hora de esperar o verso vir, não insistir em caminhos que ainda não se estabeleceram dentro da minha linguagem, linguagem que também se descola com o curso da vida.





Como surgem os seus poemas? Você é uma escritora disciplinada?
Às vezes, tenho que impor a criatividade, noutras tudo acontece do inesperado. Gosto de conversar com pessoas de mundos diversos do meu. Ontem, fiquei um bom tempo aprendendo sobre pesca em dias de chuva; noutro dia, aprendi sobre manejo de florestas, por exemplo. Os poemas por vezes surgem de demoradas pesquisas ou podem vir num átimo, motivados por algo inédito ou deste inventário de informações diversificadas que vou coletando.

Disciplina tenho para formar esse inventário para escrever. Todos os dias dedico duas, três horas para leitura, cinema, música; especialmente leitura, e escrever. E não termino um dia sem ler um poema. Gosto também de conviver com crianças.

Como você avaliaria o nosso momento atual no terreno da política e da cultura?
A política, com tristeza. Passar por esta pandemia sem qualquer compromisso do governo em adotar medidas eficazes e de prevenção é um absurdo inimaginável, com pleonasmo e tudo. O presidente, por todos os seus atos e ações, que não precisam ser repetidos aqui, adoeceu o país. E a cultura sofre, sem amparo, na contramão. Rompendo uma bandeira de vida insurgente e bela, artistas de diversos campos aliviaram e trouxeram aquele calor aos dias de limbo, especialmente no início da pandemia, valendo-se das mais variadas formas, fazendo acontecer sem apoio e num desdém deste governo. Os artistas, esses sim, estão fazendo política neste país. 





Quais são suas referências literárias? 
Drummond, sobretudo, minha referência maior; e tenho que tomar cuidado para não ouvir a voz potente deste poeta comandando meus versos, entrando neles. Gosto também de Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. 

“Alma de gato”

Mora um gato
no fundo do olho do pássaro.

O observador de ninhos alheios
assenta nos galhos mais altos:
os acusadores dos ventos.

Perito rompedor de cascas
acessa a membrana espectral.

Suga das gemas
cantos de incontáveis manhãs
e reafirma o teu nome.

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“Nome ao boi”

A marcha é limitada; é.




Não se marcha para sempre
sempre se marcha
mas não se marcha
para sempre.

A marcha é limitada
limitada pelo ato
ato de marchar

Não o destino
o para onde da marcha
mas a marcha é limitada
até o destino.

Após
novo marchar
Não o destino
Mas o ato
Marchar
até o destino.
E de lá marchar.

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“Cantiga de alpendre”

O vento suspende as toalhas
de tessitura afinada pelo amparo de mãos.

Cem rosas deram tom
ao vestido de uma mulher
que caminha
com os lábios untos

Haverá guerra?
Ou tocado de outro vento?

Tudo há de haver
haver no sentido de existir:
o brilho agudo dos teus olhos de amêndoa
oferta o universo num instante.

audima