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Estado de Minas

Dupla geografia dos desertos

Ensaios de Joan Didion mapeia um período de efervescência no século 20: quando as convulsões culturais se misturavam


05/02/2021 04:00

Joan Didion: nascida em 1934, consolidou-se como uma das principais expoentes do jornalismo literário do século 20(foto: afp)
Joan Didion: nascida em 1934, consolidou-se como uma das principais expoentes do jornalismo literário do século 20 (foto: afp)

Quando escrever se torna um ato “irrelevante”, como Joan Didion acreditou que era, a certa altura da vida alguma coisa talvez precise mudar e de forma radical. No caso, ela mesma se mudou, de Nova York para San Francisco, para ver se não apenas a relação com a escrita se alterava, mas também a relação com o mundo, que talvez não existisse mais, pelo menos não como ela o compreendia naquele momento. “Se de algum modo eu fosse voltar a trabalhar, precisaria aceitar a desordem”, ela escreve. E é bem isso que a coletânea Rastejando até Belém, da editora Todavia, tenta organizar: justamente a desordem, do mundo e a interna. Os 20 ensaios que compõem o livro de uma prestigiada escritora e jornalista, nascida em 1934 e representante do bom jornalismo literário, procuram dar testemunho do mundo à medida que ele desmorona e se recompõe, ou pelo menos é essa a impressão que a observadora tem.

Os ensaios foram escritos por encomenda, mas, na maioria das vezes, o tema era proposto pela própria autora, o que é vantagem: escrever a respeito daquilo pelo que se interessa é muito mais instigante e certamente trará resultados melhores do que se escrever sob demanda. Algo tímida, avessa a tratar com assessores ou fazer ligações telefônicas, ainda assim há algo em Joan Didion que a faz passar incólume, quase invisível, e que funciona muito bem na hora de sentar para es- crever. “Minha única vantagem como repórter é que sou tão pequena fisicamente, meu temperamento é tão discreto e sou tão neuroticamente inarticulada que as pessoas tendem a esquecer que minha presença se opõe aos seus maiores interesses”, escreve.

Em uma espécie de revide posterior a ter sido esquecida de forma deliberada, Didion prossegue: “Esta é uma última coisa a lembrar: os escritores estão sempre traindo alguém”. E, bem, os ensaios resultam dessas traições. Mas não há muito com o que se preocupar. Em geral, ela está mais determinada a transmitir uma visão muito própria e pessoal a respeito dos assuntos do que a expor quem quer que seja, com talvez uma exceção: o ator John Wayne, no ensaio “John Wayne: Uma canção de amor”. A verdade é que a traição nem o expõe tanto, trata-se mais de um processo de humanização, de caracterização para além do papel de machão que o ator executou como poucos nas telas e de algum modo o consolidou com uma posição fixa e mais ou menos imutável no imaginário cinematográfico das pessoas comuns.

Pode ser um crime cometido por uma mulher em San Bernardino, local distante uma hora de Los Angeles — no ensaio “Sonhadores do sonho dourado” —, ou um problema da comunidade de Monterey, em Salinas, na Califórnia, para aceitar a presença da escola criada pela cantora Joan Baez, o Instituto para Estudos da Não Violência, ou ainda os limites e fronteiras de um deserto e o que ele provoca nas pessoas. Há uma espécie de dupla geografia nos ensaios de Joan Di- dion. Cidades que estão cercadas por desertos, ou são elas mesmas desérticas, e os efeitos interiores que adentrar um deserto podem causar. Ela e o marido decidem ir ao México, por exemplo, não para pescar ou mergulhar, destino comum do turista americano, mas para “escapar de nós mesmos”. A receita é simples quando os lugares verdes estiverem enfadonhos, “em que só um lugar difícil, um deserto, será capaz de estimular a imaginação. O deserto, qualquer deserto, é certamente o vale da sombra da morte”.

Experiências múltiplas

Mas a multiplicidade de experiências com diferentes cidades também conta. Por isso ela escreve um ensaio, justamente o que conclui o volume intitulado “Adeus a tudo isso”, em que conta a trajetória de ter se mudado para Nova York aos vinte e pouco anos de idade, e depois ter saído da cidade quando a crise pessoal vem, e escolhe Los Angeles e os desertos em torno como a nova região para tocar a vida. O curioso é saber que aos 86 anos (e vários livros de ensaios e de ficção depois, além de roteiros), ela voltou a morar em Nova York, que continua a exercer seu magnetismo pessoal para pessoas vinculadas às artes e que usam pensamento como mecanismo de sobrevivência. Nesse sentido, resulta interessante que a escolha da editora tenha recaído sobre a primeira coletânea de ensaios de Joan Didion (escritos entre 1964 e 1967), em vez de, por outro lado, a mais recente, de 2017, intitulada South and West: From a notebook (algo como Sul e Oeste: De um caderno de notas). Como ensaísta, o livro de maior repercussão dela continua a ser O ano do pensamento mágico, lançado em 2005 e, no Brasil, no ano seguinte, pela Nova Fronteira. A coletânea foi indicada ao prêmio Pulitzer e recebeu o National Book Award.

A inteligência na articulação das três partes da coletânea Rastejando até Belém decorre daquela que é central, onde estão os ensaios mais pessoais, a respeito de ter um caderno onde anotar ideias, ou moralidade (que inclui discutir circunstâncias em que o canibalismo é admissível), ou a respeito de ir para casa. Num ensaio a respeito de Hollywood ser ou não máquina de triturar sonhos ou indústria muito rentável, ela aproveita para dispensar uma série de opiniões contundentes (e, no entanto, sutis, uma das magias secretas do bom ensaísta) a respeito da sempre eterna comparação entre fazer cinema nos Estados Unidos e fazer cinema na Europa, não necessariamente pendendo para a opinião vigente, que detrai o primeiro e eleva o último. “O impulso de tomar nota das coisas é peculiarmente compulsivo, inexplicável para quem dele não compartilha, é útil apenas de maneira acidental, secundária, da maneira como qualquer compulsão tenta se justificar”, ela escreve em outro ensaio. Mas é desse caderno de notas esparsas e soltas, desses fios mentais que parecem não ter conexão possível que ela encontra sentido e formula desenhos reconhecíveis e consegue a unidade para o conjunto da obra, reconhecível em meio a tanta inquietude.

E, em tudo, a escrita continua a se revelar, longe de irrelevante, completamente essencial.

* Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília

Rastejando até Belém
Joan Didion
Tradução de Maria Cecilia Brandi
Todavia
240 páginas
R$ 69,90 e R$ 42 (e-book)

TRECHOs

De “John Wayne: Uma canção de amor”
(foto: divulgação)
(foto: divulgação)

“Desde aquele verão de 1943, eu havia pensado em John de várias maneiras. Tinha pensado nele trazendo gado do Texas, aterrissando com aviões de um só motor, dizendo para a garota de O Álamo que ‘República é uma palavra bonita’. Nunca tinha pensado nele e em sua família jantando comigo e com meu marido num restaurante caro no Bosque de Chapultepec, mas o tempo traz mutações estranhas e lá estávamos nós, numa noite daquela última semana no México. Por um tempo, foi somente uma noite agradável, uma noite qualquer. Bebemos muito e eu perdi a sensação de que aquele rosto do outro lado da mesa era, em certos sentidos, mais familiar do que o do meu marido.”

De “Não consigo tirar esse monstro da cabeça”
(foto: o cruzeiro)
(foto: o cruzeiro)

“O que temos, então, são algumas mentes interessantes em ação, além de várias bem menos interessantes. A situação na Europa não é muito diferente. Entre os italianos, Antonioni (foto) faz filmes bonitos, inteligentes, construídos de forma sutil e intrincada, e a força deles se deve inteiramente à estrutura narrativa. Visconti, por outro lado, tem o sentido da forma menos apurado do que qualquer diretor atual. Poderíamos ter assistido ao seu O leopardo como uma sequência de fotogramas, sem ordem discernível. Federico Fellini e Ingmar Bergman compartilham uma inteligência visual impressionante e uma visão insensível e banal da experiência humana. Alain Resnais, em O ano passado em Marienbad e Muriel, demonstrou ter um estilo tão invasivo que se suspeitava que fosse uma cortina de fumaça, uma espécie de invasão no vácuo. Quanto à noção de que os filmes europeus tendem a ser mais originais do que os americanos, ninguém que tenha visto Boccaccio’70 seria capaz, mais uma vez, de trocar automaticamente a palavra ‘fórmula’ por ‘Hollywood’.”


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