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Estado de Minas

Faz escuro. mas eu conto

Leia trechos de contos incluídos na coletânea que reúne 20 escritores mineiros com textos inéditos sobre a pandemia


27/11/2020 04:00



“Na noite escura em que nos metemos, cada livro vem ao mundo como um fiapo de luz. Parece pouco, mas basta para iluminar o próximo passo”, destaca o editor e escritor José Eduardo Gonçalves na orelha de 20 contos sobre a Pandemia de 2020. Lançamento da Autêntica Editora em parceria com a Academia Mineira de Letras, o livro reúne 20 escritores mineiros que expressam as suas visões sobre o impacto do NOVO coronavírus, a convite do jornalista Rogério Faria Tavares. “A seleção dos nomes consagrou o princípio da diversidade, em toda a sua extensão. O time aqui reunido é absolutamente heterogêneo, abrigando representantes de gerações, origens, trajetórias e estilos bem distintos, providência capaz de dotar a coletânea  de caráter abrangente, inclusivo e, por isso, democrático”, explica o organizador. O lançamento está marcado para este sábado, na sede da Academia. Confira, a seguir, trechos de quatro dos 20 contos.

 
 
 
 
1) Felicidade crocante

Carla Madeira 

Sinara acordou com os olhos inchados. Tinha chorado na noite anterior. Que ela se esquecesse de dar água para as louças que se acumulavam na pia, tudo bem, mas para a samambaia? Único ser vivo ao lado dela no isolamento? Aquilo foi a gota d’água. Naqueles dias, sempre que olhava para a samambaia, vibrava certa promessa (nunca diria a ninguém) de que não lhe faltaria ar. Sinara chorou de gratidão.
 
Poucos dias antes, tinha chorado de desconcerto. Decidira fazer as unhas para levantar o astral. Encontrou, no balaio de coisas torturadas que imploravam para serem jogadas fora, um esmalte velho. Vermelho escarlate. Ótimo: cor quente, energia, luta, igualdade social. Passou o esmalte na mão esquerda. Depois, veio o desafio da direita. Um desastre. Nunca suportou a direita. Deu merda. Enrolou o algodão no pauzinho de laranjeira e, mal começou a consertar as coisas, derramou a pouca acetona que ainda tinha, virando o vidro sobre a mesa. Nesse caso, chorou dias seguidos enquanto durou o mandato. Uma eternidade. Só parou de chorar por esse motivo quando arranjou outro. O vizinho.
 
O vizinho de cima morreu de covid, soube pelo porteiro. O vizinho que escarrava em sua varanda e a chamara de putinha, justamente quando ela não transava há meses. Nunca o perdoou por lembrá-la disso. O idiota saíra em carreata de verde e amarelo gritando: fora, gripezinha. Ela não ia ser falsa, queria, sim, que ele morresse, mas mordendo a própria língua, não de covid. Chorou, nesse caso, pelas estatísticas.


2) Arma branca

Eliana Cardoso

Hoje a máquina de lavar roupa quebrou. Pode ser a gota d’água. O botão de comando gira de modo contínuo, sem controle, como meus pensamentos. Neste caso, diz o manual, chame um técnico. Ao lado do telefone me deparo com as anotações de ontem.
 
Insônia? Sim.
Taquicardia? Também.
Falta de energia? Total.
Irritabilidade? Sem fim.
Melancolia? Insegurança? Pensamentos negativos?
Desesperança.
Milhares de vidas se acabaram ontem. A gente se acostuma com os números. Uma morte é uma tragédia, cem mil, uma estatística, disse um ditador. E somos duzentos milhões de ratos incapazes de isolamento, vivendo sem condições de higiene.
Vejo a roupa suja que se acumula no tanque. Escorre um pouco de água por debaixo da máquina de lavar e se espalha no piso de porcelanato. Como pode isso? Fui tão cuidadosa. Há dois meses, quando pensei que o fim do mundo estava chegando, verifiquei o funcionamento dos eletrodomésticos, corri para o supermercado e comprei álcool gel, desinfetantes, sprays, lenços, máscaras, macarrão, arroz, sal, azeite, manteiga. E o pão de forma que coloquei no congelador. O apartamento virou uma toca. Aqui me escondo. Daqui não saio nem para caminhar na rua vazia em dia de sol.
Melhor louca e saudável do que equilibrada e morta?
 
 
 

3) Medo de respirar
 
Ivan Angelo

No primeiro mês da pandemia, quando ainda não haviam proibido o acesso das pessoas às praias do Litoral Norte e uns restos de calor do verão atraíam para a orla, como sereias, os incautos turistas daqueles dias que prenunciavam o outono, quando o mar fica gelado e se esbate em advertência, a família aproveitava o sol daquele último domingo antes da proibição geral.
 
Ninguém na água, arrepiante. Estavam na areia, ao sol ameno, a família e as famílias, o marido, a mulher, o filho, a filha e as famílias. Iam àquela praia nas férias de todos os anos e nos feriados de todos os meses porque gostavam do lugar, as crianças cresceram ali. Mantinham um pequeno apartamento de praia a duas quadras da orla.
 
Sem que as famílias se dessem conta, o mar ficou estranhamente calmo. Os que estavam na praia não souberam dizer, mas supunham que ele foi ficando calmo muito lentamente, a ponto de não se perceber; só poderia ter sido va-ga-ro-sa-men-te, porque antes, quando chegaram à praia, ele não estava assim, liso como um lago. Aquele esbater-se incessante e ruidoso havia se tornado uma respiração de bebê.
 
Não perceberam também quando o homem, o marido, se encaminhou para a água. O certo é que quando atinaram ele já estava com a cintura encoberta, mais tarde alguém disse que ele caminhava tranquilo, e entrou e avançou sem que a água oferecesse ao menos uma leve resistência ao seu avanço, sem aquela pequena luta que é o entrar na água do mar, avançava como se tivesse pés pesados e estáveis, pés de pedra, disse um, pés deslizando como se fossem peixes, disse outro, e logo os ombros sumiram, e muitos gritavam chamando-o, a mulher, o filho, e a cabeça dele sumiu e ele não ressurgiu – não se debatia! – nem voltou.
 
Por vários dias os bombeiros procuraram o corpo nas praias agora desertas, interditadas. Não sabiam como deveriam se dirigir à mulher estupefata que os procurava da manhã à tarde em busca de uma notícia, um sinal, um aceno de Deus. Diziam dona, só isso: dona. Nada ainda, dona. Fique em casa, dona, cuidado com o vírus. Descansa um pouco, dona. Qualquer novidade a gente chama a senhora, dona. Evitavam referir-se a ela como a viúva, ou a mulher do desaparecido, ou a abandonada, ou a coitada; falando com o pessoal da imprensa diziam apenas, respeitosamente, a senhora. Repórteres foram amolecendo o corpo com a falta de novidades sobre o homem que desapareceu no mar, passando a ocupar-se ora com uma surfista que decidiu brigar contra a proibição de ficar na areia ou entrar no mar, alegando que era profissional, que precisava treinar, que ia perder seu patrocínio, esbravejando arrastada pela polícia, abraçada à sua prancha; ora com um dono de hotel que reclamava compensações do governo porque os turistas estavam impedidos até mesmo de tomar refeições no estabelecimento, estrada fechada por barreiras, daí a pouco, dizia, ia ter de pôr na rua os empregados; e ora com uma quantidade de perplexas quituteiras que sustentavam suas famílias vendendo empadinhas, coxinhas e cocadas para os turistas nas praias – e agora?



4) Faminta, feroz e irrepremível

Carlos de Britto e Mello

Consegue ver?
Não.
Nem facho de luz, nem brilho, nem minha mão, que abano?
Não.
Abra bem os olhos.
Estão muito abertos.
Não vê que estou perto?
Eu não enxergo nada. Nem sei dizer se estou perto de você.
Também nada enxergo.
Nadinha?
Nem mesmo a minha própria mão, que sigo abanando.
E por que ainda abana?
Na esperança de enxergar.
Você está mais para lá ou para cá?
Não sei onde ficam lá e cá.
Também não sei.
Isso não é bom.
Nada bom.
Pode ser perigoso.
Pode mesmo.
Começo a sentir um medo imenso.
Medo? Tem medo de quê?
De coisas que enxergam no escuro.
Que coisas?
Coisas como os mortos. E as feras que abrem os olhos quando fechamos os nossos.
Conhece de perto uma fera assim?
Só conheço as feras que estão nos livros.
Como elas são?
Cheias de dentes.
Dentes?
E patas com garras sujas da pele das presas.
Que presas?
Uma presa pode ser, por exemplo, um bicho, desses bichos que dormem quando escurece, e quando acordam já estão dentro da boca terrível.
Coitado do bicho.
Mas não apenas do bicho.
Não?
Uma fera com dentes e garras é também uma fera que devora gente.
Que gente?
Gente que dorme no escuro.
Mas... Eu durmo no escuro.
Eu também.
Agora eu também sinto medo.
Deve mesmo sentir.
Nesta escuridão, pode haver uma fera disposta a nos devorar.
Pode.
A qualquer momento?
Agora mesmo.
Você acha que uma fera assim avisa antes de atacar?
Avisar?
Ela ruge, grasna, farfalha ou pia?
Não ruge, não grasna, não farfalha nem pia. Mas, desde já, esteja avisado de que ela pode atacar.
Se dormirmos.
Se dormirmos, é bem capaz de uma fera dessas abrir os olhos 
perto de nós, e nós acordarmos dentro de sua boca.
De sua boca terrível.
 
 
 
 
» 20 contos sobre a Pandemia
» Coletânea com contos inéditos de 20 autores mineiros. Organização de Rogério Faria Tavares.
» Editora Quixote+Do
» 280 páginas
» R$ 49,80

» Lançamento amanhã, sábado,  28/11, das 10h às 14h. Academia Mineira de Letras, Rua da Bahia, 1.466, Lourdes, Belo Horizonte.






Os participantes
Afonso Henriques Neto l Ana Elisa Ribeiro l Ana Cecília Carvalho l Carla Madeira l Carlos de Brito e Mello l Carlos Herculano Lopes l Cidinha da Silva l Cris Guerra l Cristina Agostinho l Eliana Cardoso l Frei Betto l Francisco de Morais Mendes l Ivan Angelo l Jacques Fux l Jacyntho Lins Brandão l Laura Cohen Rabelo l Luis Giffoni l Olavo Romano l Paula Pimenta l Stella Maris Rezende
 
 
 
 


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