Jornal Estado de Minas

POEMAS

Vertigens da fazenda em livro da mineira Maria Lúcia Alvim

IRMÃO

Brigamos muito. Quantas vezes! Fizemos as pazes outras tantas.
Paz meio que armada. Afinal ela é escorpião e eu balança, dois signos que não se beijam, dizem. Verdade? O bom do amor é quando ele invade, não pede licença nem correspondência e vem pra contrariar e confundir qualquer dos dois; e traz a boa sombra, aquela que o sol provoca.





Mas nesse compasso não é que ela ia quase escapando? Deixando pra trás, pros que continuassem vivos, uma obra extraordinária, envolvida num ato seu, a um tempo vingativo e amoroso. Ato, se consumado, perfeito em sua aparente renúncia e em seu desdém por um reconhecimento qualquer, sem o selo de seu destino. Baudelaire, por despeito, dizia que escrevia para os mortos. Ela, in absentia por desdém, escreveria para os vivos.

Bem ao jeito só dela de ferir.

Teria sucesso, não fora a boa ação dos três confrades.

IRMÃ
Trevosa e pétrea cintilância no bojo da montanha

O que eu não sou ela é
Salvou-se pelos
pés
firmes no chão
em que pisou
Não se abalou
com o estrondo e a avalanche
Deixou-se onde nasceu

*

Mineiro de Araxá e radicado em Brasília, o poeta Chico Alvim é autor de livros como Sol dos cegos (1968), Dia sim dia não (1978, com Eudoro Augusto), Passatempo e outros poemas (1981) e O elefante (2000).

Maria Lúcia Alvim
Poemas selecionados

*

Manhã sem rusga 
pequeno depósito de agrura na poça 
exorbitei de alegria 
a abóboda celeste não dá vazão 
silos de silêncio 
ó ser astral 
o capim é minha grande reserva interior 
a esperança 
desleixo

*

Curral
é onde o real
passa por cima

*

Aquele que um dia fará o meu caixão 
de antemão tem as medidas: 
menina-carapina 
surrupiando 
Viu crescer, prometer, viu sazonar. 




Quando o roxo dos ipês configurou-se 
no horizonte 
aquele que fará o meu caixão 
numa cestinha depôs amor 
e morte 
Lasca por lasca

*

Tenho um sinal de nascença 
O coração não condiz 
Esquartelado em ouro 
Cinco flores de lis 

Xadrezado em vermelho 
Cala mas não consente 
Quatro em fora 
Quatro em pala 

O timbre em leão 
O sexo em pantor 
Armas na mão 

Sou coruscável

*

Eu era assim no dia dos meus anos 
E quando me casei, eu era assim 
Eu era assim na roda dos enganos 
E quando me apartei, eu era assim 

Eu era assim caçula dos arcanos 
E quando me sovei, eu era assim 
Eu era assim na voz dos minuanos 
E pela primavera, eu era assim 

Enquanto fui viúva, eu era assim 
Enquanto fui vadia, eu era assim 
E pela cor furtiva, eu era assim 

No amor que tu me deste, eu era assim 
E trás da lua cheia, eu era assim 
E quando fui caveira, eu era assim

*

Meus olhos são como dois bacorinhos
feridos de morte

*

ANGELIM 

O carinho é um outro caminho do corpo

Sobre a autora

Nascida em Araxá, em 1932, Maria Lúcia Alvim vive hoje em Juiz de Fora e completará 88 anos em 4 de outubro. Escritos em uma fazenda em 1982, os poemas de batendo pasto foram entregues a Paulo Henriques Britto com a orientação de serem publicados apenas após a morte da autora.

Com a interferência de Guilherme Gontijo Flores e Ricardo Domeneck, contudo, e com o consentimento de Maria Lúcia, os poemas são publicados em edição da Relicário. “O livro vem marcado por um vocabulário do campo, da vida específica que lá se desenrola unindo os ritmos das refeições ao das colheitas, dos seres humanos a outras espécies que com eles habitam tais espaços: vacas, cavalos.

Mas o livro não celebra qualquer utilitarismo comercial: tudo é digno, tudo vive e compartilha espaço e seu oxigênio, os morcegos, as galinhas e os pavões, os gatos e as moscas, ou, no reino vegetal, tanto o arroz como o capim”, destaca Domeneck. “Não é nenhum exagero afirmar que batendo pasto reúne e depura o que havia de melhor na poesia dos anos 1980 e que, mesmo inédito por mais de 30 anos, sai agora com a força de um livro escrito na semana passada”, complementa Gontijo Flores.