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Estado de Minas ROMANCE

Em busca do menino perdido: jornalista adiciona ficção às memórias da infância

Em sua primeira obra, José Maria Braga relembra um canteiro de obras da rodovia Rio-Bahia, para mergulhar o leitor em uma época que não volta mais


21/08/2020 04:00 - atualizado 21/08/2020 08:15

José Maria Braga e a lembrança dos acampamentos improvisados:
José Maria Braga e a lembrança dos acampamentos improvisados: "Morávamos em casas de madeira cobertas com palha de coqueiro, sem energia elétrica" (foto: Leandro Couri/EM/d.a.press )
“Há um menino, há um moleque morando sempre no meu coração. Toda vez que o adulto balança ele vem pra me dar a mão. Há um passado no meu presente, o sol bem quente lá no meu quintal. Toda vez que a bruxa me assombra o menino me dá a mão. Ele fala de coisas bonitas que eu acredito que não deixarão de existir. Amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor...”

A canção Bola de meia, bola de gude embala muitos corações nostálgicos desde o fim dos anos 1970, quando foi composta por Milton Nascimento e Fernando Brant. Dentro de cada adulto que “balança” há uma criança pronta para assumir o controle. Uma criança eterna no corpo adulto.

Fernando Sabino também revisitou sua infância. Em 1982, apareceram as aventuras do moleque Fernando, nos anos 1920, com seu mundo simples e imaginário descrito no livro O menino no espelho. Em tom memorialístico, o escritor mineiro fala de uma época ao mesmo tempo real e fantasiosa de sua infância, quando seus melhores amigos eram Odnanref (seu reflexo no espelho), a galinha Fernanda, o papagaio Godofredo, o cachorro Hindemburgo e o coelho Pastoff.

Ele aprende a voar com os pássaros, ensina a galinha a falar e faz a travessia para o mundo adulto no diálogo entre o homem e o menino e vice-versa. Sabino mergulha em sua infância para se reencontrar.

Agora, mais um adulto faz esse mergulho, às vezes divertido, às vezes triste, em suas reminiscências, que darão saudade em todos os leitores que já tiverem os seus 50 anos ou mais. O jornalista mineiro José Maria Braga, radicado em São Paulo, acaba de lançar o romance Menino pelado, em que conta sua infância, com retalhos fictícios, num canteiro de obras da rodovia Rio-Bahia, entre os municípios de Poções e Jequié, no sertão baiano, nos anos 1960. É o primeiro livro da tetralogia, que pretende escrever, chamada Filhos do Brasil.

A narrativa, na primeira pessoa, é simples, mas dinâmica e cativante, um saboroso passeio para ler num só fôlego, vivida num acampamento de trabalhadores contratados pela construtora da estrada. Eram três ruas de terra e duas fileiras de casa feitas de tábuas, cobertas com palha de coqueiro e caiadas de branco. Por dentro, o fogão a lenha, lâmpadas penduradas por fios, bancos, camas e prateleiras feitas de pedaços de madeira, colchões e travesseiros recheados de palha de milho.

José Maria Braga pega o leitor pela mão e o leva para o seu mundo de papagaios (pipas), bodoques (estilingues), fincas, tratores e carrinhos de rolimã, falsos fantasmas sob lençóis, mergulhos em rios e lagoas, captura de passarinhos. Um mundo que hoje parece irreal, entre tantos videogames e outras tentações tecnológicas.

Ali, naquele pedaço de terra que retrata um Brasil “primitivo”, de vida dura e simples, a infância corria longe da cidade agitada. As famílias tiravam o sustento plantando verduras e legumes e criando galinhas e porcos. Uma comunidade sem rádio, sem TV, sem informações do que se passava na vida urbana, a não ser pelos mascates e pelas cartas demoradas.

Conforto não havia, mas travessuras e imaginação sobravam em meio às brincadeiras hoje desconhecidas das crianças. E, como não podia deixar de ser, tinha o menino que puxava a turma. Tomatinho era o mais corajoso e instigador. Até que um dia, num caso muito estranho, os meninos foram nadar numa lagoa. Na hora de vestir as roupas, todos ouviram Tomatinho gritar: “Cobra! Cobra! Cobra!”. E correr desesperado e pelado. Uma cobra que ninguém viu. Ele ficou longo tempo traumatizado. E tinha também a sapeca Vilminha, a única menina do grupo que também encarava as brincadeiras.


“O HOMEM DO SACO”

O narrador-protagonista, como um alter ego do autor, reconstroi suas travessuras, que, às vezes, eram consideradas exageradas pelos pais. Quando o castigo não era físico – na terrível vara de marmelo, os beliscões e puxões de orelha e ajoelhado no milho –, vinha por meio psicológico, no assustador “homem do saco”, pesadelo de gerações e que ainda hoje pode ser “encontrado” no interior.

“Só mesmo as histórias estranhas contadas por nossos pais para nos meter algum medo e nos segurar nos arredores do acampamento. Uma que funcionava era a do papa-figo: um homem que andava sozinho pelas estradas e pelos matos com um saco nas costas para pegar meninos desobedientes. Uma pessoa com aparência normal, mas que escondia unhas de gavião, dentes e orelhas de vampiro. Roubava as crianças para comer o fígado e curar a doença que tinha.Deixava ao lado do corpo um pouco de dinheiro para o caixão. Contada no tom certo, com alguma dramaticidade, era de arrepiar. Imagine, aos cinco anos, ouvir, com ares de verdade, da boca de nossos parentes. Minha tia dizia que o papa-figo enganava a gente sendo bonzinho, falando baixo, oferecendo balas e doces. Ele também era chamado de 'velho do saco'. Acontece que, naquele fim de mundo, a toda hora cruzávamos com homens andando sozinhos e com um saco nas costas”, conta o narrador.

O mundo do menino pelado e seus amigos travessos não existe mais, a não ser na imaginação de quem viveu aqueles tempos, com seus corações transbordando saudade. Vai o tempo, ficam as boas lembranças.

ENTREVISTA
JOSÉ MARIA BRAGA 
 Escritor e jornalista

“Não há muito o que fazer contra celulares”
 
O que existe de autobiográfico em Menino pelado?
A maior parte do que descrevo no livro foi inspirada na minha infância, e no dia a dia de centenas de famílias que andavam pelo Brasil seguindo as obras de uma construtora de estradas nos anos 1960. Era uma vida de muita dificuldade. Vivíamos em acampamentos improvisados, morávamos em casas de madeira cobertas com palha de coqueiro, sem água, sem escola e sem energia elétrica.

Fatos, acontecimentos, personagens e cenários são parte desse mundo quase primitivo que testemunhei quando criança. O livro é, em parte, um retrato daquela época, dos sonhos e esperanças de todas aquelas pessoas, tudo recriado a partir da perspectiva e do olhar de uma criança.

Você acha que a infância continuará cada vez mais tecnológica e distante da natureza ou há esperança de volta às origens?
Acho que, infelizmente, é um caminho sem volta. O  mundo mudou, mudaram os processos educacionais e as crianças têm milhares de outros estímulos para o seu desenvolvimento e aprendizado de vida.

Talvez nas pequenas cidades ainda sobrevivam, por mais algum tempo, os pequenos fragmentos de uma infância ao ar livre, com crianças descalças, criando seus próprios brinquedos, em contato direto com a natureza, seus bichos e seus mistérios, mas uma volta às origens não tem a menor chance nos dias de hoje. Dá saudade e uma certa tristeza, mas não há muito o que fazer contra celulares, tablets, joguinhos e um aplicativo novo a cada semana.

Hoje existe mais consciência ecológica, como o fim do aprisionamento de passarinhos em gaiolas e viveiros e da caça de animais silvestres? Ou nada mudou?
Mudou tudo, e completamente. A consciência ecoló- gica, assim como a tecnologia, veio para ficar. É ensinada nas escolas em todas as etapas da educação. Na minha infância, éramos pequenos caçadores. Aprendíamos a caçar, matar, limpar e assar passari- nhos. Armar arapucas, construir gaiolas e alçapões fazia parte da nossa vida, dos nossos costumes e do nosso dia a dia. Alguns jovens de hoje que leram o livro têm dificuldade de acreditar que vivíamos daquele jeito, um mundo completamente absurdo e surreal para eles. Muitos me escrevem para perguntar se tudo o que tem no livro é invenção ou se aquilo existiu mesmo. Parece filme, me disseram alguns deles. Parece mesmo.

Afinal, o que aconteceu de fato com Tomatinho naquele surto? Foi real mesmo?
Todo mundo me pergunta isso. E a resposta é sim, foi real e eu testemunhei. Existiu um menino que viveu o trauma citado no livro. Não vamos dar um spoiler, mas algo parecido aconteceu com esse menino. Claro que peguei uma lembrança e dei a ela um  tratamento ficcional. Criei um personagem com vida própria e uma caracterização que nada tem a ver com o original. Do garoto verdadeiro restaram o nome e o trauma, mais nada.

Ele, de fato, se chamava Leonardo, mas não tinha o apelido de Tomatinho. Com a personagem Vilminha, também marcante para os leitores, aconteceu a mesma coisa. Ela existiu, hoje mora em Uberlândia, e são reais as estripulias e espertezas atribuídas a ela no livro, mas também é uma criação literária. 

TRECHO 
DO LIVRO

“A situação só começou a mudar com a nova professora – a anterior, dona Lourdes, havia se casado e voltado para a cidade. Logo nos primeiros dias, quando viu a molecada coçando a cabeça sem parar, dona Neia mandou um recado para as mães: criança com piolhos não iria entrar na escola. A ameaça deu certo. Daquele dia em diante, pelo menos na escola, não víamos mais a meninada em desespero coçando a cabeça. Ela era uma professora diferente. Para começar, vinha de uma cidade grande, não tinha vara de marmelo, não batia nos alunos e não colocava os meninos ajoelhados no canto da sala.

Quando precisava repreender algum moleque, ela o chamava para sentar-se em uma cadeira ao seu lado, de frente para a turma. Era o suficiente. Ninguém gostava de ficar exposto daquele jeito, tendo de abaixar a cabeça para não ver as caretas de gozação dos colegas. Outro castigo era chamar o bagunceiro inquieto e lhe dar tarefas, como apagar o quadro, escrever os números de um a cem ou o alfabeto inteiro, reproduzindo o som de cada letra. Nós também tínhamos que copiar as letras e repetir os sons. Quase uma brincadeira. Perto da palmatória e das varadas de marmelo da nossa antiga professora, as punições de dona Neia pareciam picolé de coco em dia de calor.”

Menino pelado
De José Maria Braga
Editora Bom Sucesso
264 páginas
R$ 45,50
R$ 37,90 (Mercado Livre e Amazon)
R$ 28 (e-book)
Venda em BH: Livraria Quixote


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