Jornal Estado de Minas

O impacto da ausência do rito funerário

Felipe Riccio
Especial para o EM

A imagem de um homem palestino que escalou a parede de um hospital para ver a mãe, internada com o novo coronavírus, repercutiu no mundo todo. Sentado na janela e com os olhos fixos na mãe, a angústia daquele rapaz está, hoje, cravada no peito de muitas pessoas ao redor do mundo. 





Com uma alta taxa de transmissibilidade, uma vez infectada, a pessoa deve se isolar. Quando os sintomas dão seus sinais mais fortes e a internação se faz necessária, o reencontro dependerá da recuperação do paciente. Caso a doença o leve à morte, ninguém mais poderá vê-lo. Daí o desespero do homem palestino que não hesitou em escalar, durante dias, as paredes do hospital. Ele descia somente quando sua mãe tinha pegado no sono. Infelizmente, Rasmi Suwati, de 73 anos, não resistiu. 

Provavelmente, as imagens da mãe pela janela serão as últimas que Jihad Al-Suwati terá em sua recordação. Por causa da doença, os ritos funerários ficam também inviabilizados. É certo que esses ritos variam entre as diferentes culturas, mas é difícil pensar alguma sociedade em que a morte não tenha um aspecto central. Dado o caráter pandêmico do coronavírus, a ausência dos ritos funerários é mais um dos ingredientes nocivos à psique. Os traumas que a ausência de um lugar individualizado de memória pode causar, juntamente com a ausência dos demais ritos – como a solidariedade de parentes e amigos, a missa de corpo presente, os cânticos – ainda estão longe de poder ser mensurados, mesmo que seus efeitos já estejam presentes depois de meses de pandemia.

 Isso se agrava ainda mais se levarmos em conta que nos dois países que mais mortes tiveram até agora por causa do coronavírus, Estados Unidos e Brasil, os ritos em torno da morte são expressivos. Aqui e lá, a morte é também uma hora de grande investimento, como fica explícito na quantidade de planos funerários existentes nos dois países. Ademais, é uma cerimônia coletiva repleta de símbolos. Nos Estados Unidos, para termos uma ideia, há cursos de bacharelado em ciências mortuárias. Ainda assim, parece pouco provável que os governos dos dois países colocarão em pauta políticas de assistência psicológica para as famílias que perderam pessoas pela covid-19. 





Ritos funerários

No nosso país, a relação entre ritos funerários e epidemias vem de longa data. Exploraremos o período que vai da revolta popular que ficou conhecida como “cemiterada”, na cidade de Salvador, nos idos de 1836, até a epidemia de cólera ocorrida em 1855 e 1856. A “cemiterada” é um indicativo forte de como modificações abruptas em torno dos ritos funerários podem até mesmo descambar em cenas de violência. No Brasil oitocentista, a morte tinha características barrocas acentuadas: muitos símbolos, protocolos sagrados, vestimentas e cortejos fúnebres – que já eram estipulados nos testamentos. Diferentemente de hoje, entretanto, durante a primeira metade do século os enterros se davam no interior das igrejas. A seleção do local em que cada pessoa era enterrada não era algo meramente ocasional. Havia uma geografia complexa que deixava entrever as desigualdades envoltas no momento da morte. Sendo assim, as pessoas podiam ser enterradas no altar-mor, na entrado do templo, debaixo da pia.

Esse contato estreito entre mortos e vivos foi favorecido, desde a Idade Média, pela criação de uma nova região celestial: o purgatório. Aos vivos estava aberta a possibilidade de proporcionar uma saída mais rápida desse local. Colocava-se em prática uma “economia da salvação”, em que as irmandades tinham papel central. As pessoas ingressavam nas irmandades em busca, entre outras coisas, de um enterro digno. Aos seus membros cabia acompanhar os mortos até a sua sepultura. Pessoas mais abastadas não raro participavam de mais de uma irmandade.

Ainda que fosse a regra no Brasil oitocentista, essas práticas eram condenadas pela Igreja desde o século 16, com o Concílio de Trento, quando foram demarcadas fronteiras entre o culto do divino e o culto dos mortos – este típico das religiosidades pagãs. Condenada pelo alto clero, era fonte de renda importante para os representantes do baixo clero, que arrecadavam as taxas embutidas no processo.





No entanto, um ano após a Revolta dos Malês – que colocara fim a um período de grandes revoltas escravas que abalaram os primeiros decênios do século – a edição de uma lei provincial estipulou que, daí em diante, os enterros nas igrejas estavam proibidos. Para seu lugar tinha sido construído um cemitério cuja administração ficaria a cargo de uma empresa privada pelo período de trinta anos. A reação não tardou.

Três dias após a inauguração do cemitério, o local foi tomado por populares. Enfurecidos, colocaram os muros abaixo, quebraram as sepulturas e não pouparam sequer as capelas. O ato teve efeito e a lei foi revogada. Os enterros nas igrejas perdurariam por mais 19 anos. Assim, somente no auge da epidemia da cólera, nos idos de 1855, o cemitério foi reaberto. O motivo tinha a ver com a epidemia que ceifou cerca de 300 mil vidas no Brasil. Somente em Salvador, conforme João José Reis, chegou a vitimar em torno de 10% da população. Não caberiam tantos mortos no interior das igrejas. E, ademais, os vivos tinham grande receio de que pudessem ser acometidos pela doença no contato com os mortos.

Mas as semelhanças não pararam por aí. Assim como a covid-19, a epidemia da cólera, pelo número elevado de mortes, provocou inúmeros traumas na população coeva. O enterro não apenas se modificou de lugar, mas, em muitos casos, tornou-se impossível. Em muitas cidades e vilas do Brasil oitocentista, pessoas mortas eram abandonadas pelas ruas, e até mesmo queimadas, em cenas similares às ocorridas recentemente no Equador em decorrência do coronavírus. 





Cabe destacar que tanto a cólera como a covid-19 tiveram como principais vítimas pessoas mais pobres, sobretudo negras. Para o caso da cólera na cidade do Rio de Janeiro, no biênio 1855-56, se os negros foram os mais atingidos, a letalidade para os africanos foi ainda maior do que a dos crioulos – isto é, negros e negras nascidos no Brasil –, pois estes estavam mais inseridos em redes de solidariedade que ajudavam os doentes. Para o caso do coronavírus, muitas lideranças dos movimentos negros têm alertado para uma coleta indevida dos dados, afetando a mensuração de mortes por raça. Mesmo com eventuais subnotificações, segundo dados da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, por exemplo, a letalidade da doença é 46% maior entre pessoas declaradas pretas em relação às brancas no estado. Com acessos tão discrepantes à hospitalização e aos cuidados de saúde, a morte torna-se altamente desigual. 

Como nos ensinou Émile Durkheim, a união das pessoas está diretamente ligada aos ritos e às cerimônias. Em momentos de transição – e a morte é um deles – a solidariedade do grupo é reafirmada por meio dos ritos coletivos nos quais os participantes se veem na obrigação de se adaptar a uma modificação no curso de suas vidas. Dessa maneira, no contexto em que vivemos, à dor imensurável da perda somam-se os abalos nas personalidades dos que ficam.

Felipe Riccio é doutor em ciência política, professor e historiador