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Estado de Minas

O deslocamento dos sentidos

Ao analisar a instalação do belga Marcel broodthaers em torno de um dos mais célebres poemas de Mallarmé, o filósofo francês Jacques Rancière desenvolve um ensaio que reafirma a singularidade da arte


14/08/2020 04:00

Rancière: originalidade do pensamento ao propor nova leitura para a poética de Mallarmé(foto: AFP)
Rancière: originalidade do pensamento ao propor nova leitura para a poética de Mallarmé (foto: AFP)

Graça Ramos
Especial para o EM

Tornou-se lugar-comum afirmar que o belga Marcel Broodthaers (1925-1976) transformou-se de poeta em artista plástico. Pró- ximo dos 40 anos, ele transmutou exemplares de seu último livro de poemas ao cobri-los com gesso e expor o novo objeto em uma galeria. O gesto inovou, provocou, e o autor permanece enigma estudado por muitos teóricos. O mais recente a se desdobrar sobre sua arte é o filósofo Jacques Rancière. 

Debruçado sobre a estreita relação que Broodthaers desenvolveu com a poesia de Stéphane Mallarmé (1842-1898), Rancière (Argel, 1940) escreveu, em 2005, o ensaio O espaço das palavras – de Mallarmé a Bro- odthaers, agora lançado no Brasil pela editora mineira Relicário. Dos mais importantes filósofos em atuação, o autor se notabiliza tanto por análises estéticas como pelas reflexões sobre política. Assina, por exemplo, o essencial Ódio à democracia (Boitempo, 2014), que ajuda a compreender a demofobia em que estamos imersos no Brasil.

É a partir da instalação realizada por Broodthaers, intitulada Exposição literária em torno de Mallarmé, que Rancière desenvolve a trama de seu ensaio sobre o espaço das palavras. O texto foi preparado para dar suporte a uma exposição panorâmica de Broodthaers, que incluía as obras em diálogo com o poeta. Datada de 1969, a instalação apresenta quatro variações para o célebre poema Um lance de dados jamais abolirá o acaso, do simbolista francês. 

Sempre é bom recordar o caráter verbovisual da composição de Mallarmé. Obra que inspirou inúmeros artistas das vanguardas do início do século 20 sem sofrer alterações em sua plástica, mas que, na instalação de Broodthaers, ganhou nova face. Teve partes ocultadas, perdendo sua inteireza. Tornou-se, diz Rancière, obra antiplástica.

A obra perdeu a integralidade ao substituir palavras por retângulos pretos em três das versões apresentadas de Um lance de dados... e escrever, com giz, palavras do po- ema em camisetas pretas, penduradas em cabides. Embora tenha negado o poema de Mallarmé, Broodthaers terminou por reforçar o caráter mallarmeano ao criar nova imagem, ao romper fronteiras entre linguagens artísticas.
 
À maneira singular do esteta, marcada por deslizamentos contínuos de associações a outros artistas, o ensaio de Rancière revela-se discurso apaixonado ao argumentar que “Broodthaers defende o poder das palavras em criar espaços”. A originalidade do pensamento do filósofo advém do esforço de propor nova leitura para a poética de Mallarmé e, por derivação, chegar a Broodthaers. 

Segundo ele, em Mallarmé, o poema “se apresenta como traço espacial e objeto do mundo”. Defende que a singularidade do poeta reside na caracterização do poema como simbolização da comunidade. Segundo ele, para Mallarmé, a vida da comunidade obedece a uma dupla lei, a da economia e a da estética. Tal caminho expõe a arte como espaço de confrontação.   

A partir de tais premissas, de posse de linguagem sofisticada, pouco dado a facilitar caminhos para quem tem menos fluência na leitura filosófica, ele questiona o senso comum sobre o papel desempenhado por Broodthaers. “Se ele deixa de ser poeta, não é para se tornar artista plástico”, diz Rancière. “É para se tornar artista, ou seja, realizar também uma nova ideia do artista, na qual este se define principalmente por sua atitude ne- gativa”.

No período de 12 anos, do momento em que transformou seus livros em esculturas até morrer, Broodthaers não parou de atiçar, em pêndulo afirmação-negação, a ordem que rege o mundo da arte, questionando sistemas de validação, o papel de curadores e historiadores da arte. Chegou a organizar o seu Museu de Arte Moderna, Departamento de Águias, instalação que catalisava essas questões. Não era, contudo, iconoclasta radical. Em suas obras, resíduos de lirismo ainda reverenciavam artistas predecessores e podiam expor anseios românticos.


Humor e cinismo
Quase sempre, realizou tais desencaixes com humor, quiçá alguma dose de cinismo, e em diálogo com outros poetas – Baudelaire, por exemplo, “assina” um dos seus filmes experimentais, e La Fontaine teve uma fábula redesenhada. Como costuma ocorrer em movimento dialético típico do circuito em que se move a arte no mundo capitalista, terminou absorvido pelo mercado. Tornou-se um dos nomes centrais, inclusive em valor comercial, da contemporaneidade. 

Centralidade que rendeu, em 2016, importante retrospectiva de sua obra, realizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, com itinerância para Madrid e Dusseldorf. Muito bem articulada, a mostra foi leal ao projeto do artista de propor alegorias capazes de aguçar a percepção do público. Demostrou também o quando Broodthaers dialogou com alguns artistas, em especial, René Magritte, Marcel Duchamp, e, talvez sua principal seiva, Mallarmé.

Ao analisar a instalação em torno de Um lance de dados..., Rancière argumenta que Broodthaers mudou a economia tanto do poema como das artes plásticas. Dedicou-se, conforme explica o ensaísta, “à relação que o espaço estabelece entre a palavra-ideia e a forma”. Compreendeu, diz o filósofo, “o primado da poética mallarmeana, o das pala- vras-ideias, e a pureza da demonstração”. 

Broodthaers, portanto, agiu como um mallarmeano, preocupando-se com a economia e a estética. Expondo a arte como espaço de tensão. Recorrendo a palavras de Rancière, criou “um novo sensorium, outros hábitos perceptivos”.  Com a negação ao poema ori- ginal, o artista possibilitou a geração de novos sentidos, o que depende da acuidade do vedor – a expressão é minha e se refere ao sentido etimológico da palavra, aquele que descobre veios, nascentes de água.

Segundo Rancière, na decisão de transportar o poema para uma galeria, Brood- thaers realiza nova transformação – a de levar a literatura para o espaço das artes plásticas, criando um poema espacial. E, conforme escreveu Sérgio Medeiros na orelha do livro, o que Broodthaers propõe não é poesia nem artes plásticas, “mas um enigma”, o que é próprio da arte do presente.

Se há algo em que no desenrolar da leitura do pequenino livro (em dimensões e páginas) Rancière insiste, é na necessidade de a arte ser singular. Diz ele: “para que o poema possa fundar uma outra economia, é preciso que um poema exemplar prove a absoluta diferença do que lhe é semelhante, fixando no espaço o número único que não pode ser outro”. Como bom conhecedor dos mallarmeísmos, ele acredita que esse número único “é sempre uma colagem do acaso”.

O espaço das palavras – De Mallarmé a Broodthaers
• De Jacques Rancière
• Editora Relicário
• Tradução de Marcela Vieira e Eduardo Jorge de Oliveira
• 68 páginas
• R$ 29


Graça Ramos é doutora em história da arte


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