Jornal Estado de Minas

IMPACTO

Santa Tereza e o isolamento: o impacto da pandemia no histórico bairro

Praticamente sozinhos na imensa praça, a mãe e o filho pequeno, ambos de máscara, ouvem com sobriedade a Ave Maria de Gounod que ecoa diariamente da igreja de Santa Tereza, às 18h, horário de Ângelus. Desta vez, no entanto, por quarteirões desertos. Ao menos naquele mês de abril, o clima era de consternação, de olhares desconfiados entre frestas de janelas e comércio de portas cerradas, sem o tradicional burburinho das crianças saindo do Colégio Tiradentes.



Num compasso de apreensão, mais do que se precaver, as ruas pareciam antecipar o luto. Curiosamente, a pandemia e a necessidade de distanciamento social talharam no espaço público ares de maquete de projetistas, nas quais reinam as edificações e as pessoas são meros traços isolados.

Algo instigante para a observação de quem cotidianamente pesquisa a dinâmica urbana na região. Porém, não menos atordoante, tendo em vista um bairro que tem seu imaginário calcado na prosa entre moradores nas calçadas, no burburinho de bares históricos, na ocupação transgressora dos carnavais, no acolhimento de esquinas poéticas e musicais. Mas nem sempre foi assim.

Nas primeiras décadas do século 20 pairava sobre a “região do Isolado” um forte estigma, chegando ao ponto de comerciantes serem aconselhados a evitarem investimentos ali. Tudo em função do Hospital do Isolamento, especializado em doenças psiquiátricas e infecto-contagiosas, dentre elas as temidas varíola e tuberculose.



Durante a Gripe Espanhola de 1918, suas duas enfermarias e 23 leitos foram essenciais para salvar vidas de inúmeros mineiros, internados na imponente construção cercada por mangueiras, goiabeiras e jamelões. Posteriormente, recebendo o nome de Cícero Ferreira, o hospital funcionou por 55 anos, até 1965.


Já na década de 1970, a área de 10 mil m² deu lugar ao Mercado Distrital. Hoje desativado, o local é tensionado, de um lado, por pressões políticas e econômicas, e, de outro outro, pelo desejo da comunidade de implementar uma ocupação sustentável e cooperativa, reescrevendo a íntima relação entre memória e pertencimento social no bairro.
Desfile do bloco Queimando o Filme pelas ruas do Bairro Santa Tereza, em fevereiro (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press - 8/2/20)

Voltando à região do Isolado, até o início da década de 1930, a área da antiga fazenda Boa Vista e da ex-colônia agrícola Werneck (indicada na planta de Aarão Reis) padecia não apenas do estigma sanitário, mas de infraestrutura precária, segundo tese do geógrafo Ulysses Baggio.



A política de imigração, com a presença de muitos italianos, e principalmente a destinação de terrenos a militares do quartel da Força Pública instalado na praça principal aos poucos pesou para melhorias, como a expansão da linha de bonde em 1928. Até então, sem o nome definitivo, buscou-se inspiração no Rio Janeiro, então capital da República, num bairro que igualmente tinha o bonde como (charmoso) acesso à região no alto da cidade: Santa Teresa.

Apesar desta referência e de a matriz mineira (que esperou 31 anos de obras até ser inaugurada em 1962) homenagear Santa Teresa e Santa Teresinha, passou a ser predominante a grafia com Z por aqui.

A história do bairro carioca naturalmente é recoberta por muito mais camadas de tempo numa região ocupada desde o século 18, tendo como marcas deste período os casarões de influência francesa e a fundação do Convento de Santa Teresa.

O clima ameno, que tanto agradou aos europeus, mais à frente foi a razão para atrair muitos que fugiam da febre amarela que se alastrava na parte baixa. Uma das versões aponta que a doença veio de carona num navio negreiro de Nova Orleans, passando por Havana e Salvador até se espalhar pelas praias dos Mineiros e do Peixe, acometendo um terço da população da então capital do império por volta de 1850.



Enquanto a Santa Teresa carioca foi refúgio contra a epidemia, cerca de sete décadas depois a mineira foi salvação para os acometidos pela Gripe Espanhola — maculando, no entanto, toda a região. 

Em ambos os bairros, o bonde foi responsável até a primeira metade do século 20 por alavancar o desenvolvimento econômico e urbano, com suas sabidas contradições. Ainda assim, a metropolização que se dava do centro aos bairros chegou de forma gradual nessas regiões, sem a voracidade imposta pelo mercado imobiliário — devido ao distanciamento topográfico e por outros fatores que ainda merecem ser mais bem compreendidos.

É assim que transcendendo o viés religioso e elitista, no caso fluminense, e militar, no belo-horizontino, Santa Teresa passou a ser sinônimo lá e cá de um espaço marcado pela arquitetura antiga, comportando temporalidades diversas e acolhendo outros modos de vivenciar a cidade. 




Praça Duque de Caxias: um século depois, a pandemia do novo coronavírus também faz vítimas (foto: Eliza Peixoto)


Matizes urbanas


Essas sensíveis matizes urbanas tanto foram berço de artistas (o carioca Pixinguinha e os mineiros do Clube da Esquina) quanto atraíram criadores, intelectuais e músicos em diferentes momentos. A cativante permanência de parte destas paisagens ainda hoje, no entanto, não se dá ao acaso, mas sim como resultado de lutas por legislações de proteção, como a área de diretrizes especiais conferida à Santa Tereza, fruto da mobilização de associações e moradores para frear a especulação imobiliária da década de 80, com recrudescimento e embates em anos recentes.

Hoje, em meio à pandemia de COVID-19, observar Santa Tereza esvaziada é didático para compreender que a paisagem não se diferencia da experiência social dos sujeitos, como ensinou Milton Santos. Mesmo sem o “balé das calçadas” descrito por Jane Jacobs para sua Greenwich Village, cada rua reverbera apropriações, lutas e desigualdades.

É neste momento que ficam mais evidentes no espaço os corpos pardos e negros que seguem recolhendo nosso lixo nos caminhões (mas também nos trajetos e coletivos de catadores), nos caixas das farmácias, nas motos e bicicletas que cruzam velozes as esquinas para trazer nossa refeição deixando ressoar seus aplicativos que lhe rendem algum tostão: “seu destino está logo adiante”.





A pandemia deve trazer sequelas para o espaço público, seja por medidas sanitárias a longo prazo ou recessão econômica e adoção de novas práticas. Em áreas de forte apelo de memória e pertencimento como Santa Tereza, o imaginário urbano também pode, lendo a história a contrapelo, ser sinônimo de reconhecimento aos que trabalham arduamente no isolamento dos hospitais e de apoio aos que tiram o sustento diário nas ruas, aquela que sente nos nervos a miséria da criação.

O destino de um direito à cidade renovado passa por seguir os trilhos das contingências do presente, onde a sociabilidade pode ser sinônimo, ao menos por enquanto, de recolhimento aos que podem, para mais à frente retomar sua força de irreverência, empatia e maior agregação.

João Marcos Veiga é jornalista e doutorando em História Social da Cultura pela Fafich/UFMG, pesquisando o Bairro de Santa Tereza-BH, onde também reside

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