Jornal Estado de Minas

PALESTRAS

O mundo em metamorfose, na palavra de intelectuais, professores e ativistas

Mundos paralelos, que se distanciam. Ao mesmo tempo em que a ciência e a tecnologia empurram a inteligência artificial para avanços incríveis, alguns ainda inimagináveis; aprofunda-se a desigualdade, a exclusão, a pobreza, dimensão em que está afundada a maior parte da população global. Eis o paradoxo.



“Com esse futuro a gente precisa chorar. Que futuro é esse? Pra quem é esse futuro?”, indaga Grazi Mendes, professora, diretora de uma empresa multinacional de tecnologia e ativista pelas causas da diversidade e inclusão, em referência ao aprofundamento de desigualdades sociais com a pandemia e aos jovens estudantes de periferia, que estão sem acesso ao conteúdo escolar porque não têm internet, nem equipamentos. “Como podemos criar realidades e futuros no plural para de fato, utilizarmos a tecnologia com o potencial que ela tem, para trazer mais pessoas juntas e não continuar ampliando esses abismos?”, ela pergunta.

Eduardo da Motta e Albuquerque, professor titular do Departamento de Ciências Econômicas e do Cedeplar da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), assim resume a natureza do dilema a ser enfrentado pela nossa civilização depois da pandemia: “Vamos ser um núcleo de avanço científico e tecnológico num mar de precariedade? Ou teremos uma disseminação inclusiva do potencial criador e humanizador das novas tecnologias, que vai abarcando parcelas crescentes da humanidade?”.

São tantas perguntas, que em tempos de inflexão na forma de trabalhar e agir a Casa Fiat de Cultura, o Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB, o Memorial Minas Gerais Vale e MM Gerdau – Museu das Minas e do Metal, integrantes do Circuito Liberdade, promovem, pela primeira vez em curadoria colaborativa, o webinário Conversas sobre perguntas com pensadores, intelectuais, professores e ativistas brasileiros.


Inicia-se com o líder indígena Ailton Krenak, neste 14 de julho, estendendo-se até 18 de agosto, todas as terças-feiras, às 17h, em palestras transmitidas pelos canais do YouTube dos espaços culturais. Os expositores apresentarão respostas, ideias e mais perguntas. Eduardo e Grazi, palestrantes sobre Outras economias – Inteligência artificial, modelos e futuro do trabalho, falarão em 28 de julho.

A iniciativa – a primeira do gênero reunindo em cooperação empresas com marcas e posicionamentos distintos no mercado, –  busca construir um conteúdo provocativo, com elementos para reflexões sobre as mudanças reservadas a cada um e à sociedade, depois do colapso da vida cotidiana, explica Ana Vilela, gestora da Casa Fiat, uma das idealizadoras do evento. 

Programação confirmada
 
»  As potências do afeto, Ailton Krenak (14/7), YouTube Casa Fiat de Cultura

»  As faces do futuro: mudanças socioculturais, criatividade e inovação, Lala Deheinzelin (21/7), YouTube MM Gerdau

»  Outras economias – inteligência artificial, modelos e futuro do trabalho, Eduardo da Motta e Albuquerque e Grazi Mendes (28/7), YouTube MM Gerdau

»  Os novos desafios do eu – Psicanálise e vida pós-pandemia, Christian Dunker (4/8), YouTube Memorial Minas Gerais Vale

»  Narrativas para novo(s) mundo(s) – Os lugares da cultura, Conceição Evaristo e Júlia Rebouças (11/8), YouTube Memorial Minas Gerais Vale
 
serviço
 
»  Conversas sobre perguntas
»  Quando: Entre 14/7 e 18/8, terças-feiras, às 17h
» Onde: Canais do YouTube dos espaços culturais Casa Fiat de Cultura, Centro Cultural Banco do Brasil, Memorial Minas Gerais Vale e MM Gerdau

 

Eduardo da Motta e Albuquerque
professor titular do Departamento de Ciências Econômicas e do Cedeplar da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pesquisador das áreas de economia da ciência e tecnologia 

‘‘Estamos num momento onde nunca precisamos tanto e nunca tivemos tanto progresso tecnológico e científico’’

Algumas pandemias representaram, ao longo da história, pontos de inflexão nos sistemas políticos. O que esperar desta pandemia que o mundo enfrenta?
As grandes pandemias na história têm correlação profunda com as condições do trabalho e as transições. Houve uma pandemia entre 541 e 750 d.C., que está associada ao fim da escravidão enquanto sistema econômico, pelo menos na Itália e em regiões da Espanha, porque mudou a relação de trabalho. Depois teve a peste negra, de 1347 a 1352, que está associada ao fim da servidão, o que ocorreu com o colapso do feudalismo.


A pandemia que vivemos hoje ainda deixa muitas interrogações não respondidas. Estudando a influenza de 1918, aquele momento que se misturou com a Primeira Guerra Mundial, foram pelo menos três ondas da pandemia até parar. Neste momento, nós não sabemos onde estamos. Podemos estar no meio e ter outras ondas. Mas olhando para o que é o capitalismo global, não vejo perspectiva de ruir neste momento. O que tem, sim, é a possibilidade de ter mudanças profundas. O mundo do trabalho vai ser afetado porque o desemprego já era alto no planeta antes da pandemia. Neste momento, a pandemia está acelerando a digitalização da economia.

E, nesse sentido, a inteligência artificial está sendo estimulada: agora é empurrada para maior velocidade. Certamente, devemos imaginar que vêm mudanças. Tais mudanças inclusive vão estar associadas a importantes inflexões da geopolítica global. Olhar para a China é olhar para um país que se sai muito bem nesta entrada do mundo digital.

Ao considerar os dados do desemprego global e da precarização do trabalho, podemos supor que, depois da pandemia, nos aguarda um retorno a novas formas de escravidão?
Qual é o dilema que vivemos? Estamos num momento onde nunca precisamos tanto e nunca tivemos tanto progresso tecnológico e científico. Nunca o mundo produziu tantos artigos científicos, nunca produziu tantas patentes, nunca teve tanta gente empregada em ciência e em tecnologia. Ao mesmo tempo em que coisas sofisticadas, como a inteligência artificial, avançam, tudo está surgindo ao lado de uma tremenda precarização.


Abra o relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2018 e os dados são espantosos: primeiro temos o desemprego, segundo temos o trabalho vulnerável, depois temos o trabalho precário. No relatório da OIT de 2019, relativo aos dados de 2018, tínhamos no mundo, no conjunto dos 5,7 bilhões em idade de trabalhar, cerca de 3,3 bilhões de trabalhadores empregados no planeta. Desses empregados, 61% eram trabalhadores informais; apenas 39% eram trabalhadores formais. Acho que essa associação entre novas tecnologias e precarização é uma das possibilidades. E negativa.

Cada progresso tecnológico em geral se associa ao desemprego. Mas não é a única possibilidade, porque cada máquina nova poderia, ao invés de desempregar, reduzir a jornada, colocar as pessoas para estudar. Com mais estudo, mais capacitação, a produtividade cresceria. Então, há alternativas de organização. E é a sociedade que define isso. Então, vamos ser um núcleo de avanço científico e tecnológico num mar de precariedade?

Ou teremos uma disseminação inclusiva do potencial criador e humanizador das novas tecnologias, que vai abarcando parcelas crescentes da humanidade? Esse é o dilema. Eu vejo a ciência e tecnologia para isso, eliminar trabalhos que colocam a vida humana em risco, que são para ser feitos por máquinas e não por humanos.

A que momentos de nossa história econômica recente esta pandemia pode ser comparada?
Crise é momento de transformação estrutural do sistema capitalista. Este é um sistema que tem flexibilidade, uma capacidade de adaptação tremenda. A crise de 1929 provocou o New Deal nos Estados Unidos, e depois um conjunto de mudanças decorrentes do quadro de transição hegemônica que culminou com o fim da Segunda Guerra Mundial, mudando o planeta completamente. Estamos vivendo algo similar. Possivelmente, tem espaço para ter transformações estruturais importantes, que a pandemia vai forçar.


Tem muita gente falando em Plano Marshall que os Estados Unidos implementaram na Segunda Guerra Mundial para recompor a economia. Mas esse plano foi depois que a guerra acabou. Antes teve o Projeto Manhattan, um tremendo investimento público para gerar uma arma atômica que forçou o fim da guerra. O mundo precisa agora de um Projeto Manhattan, mas para gerar a vacina, abrindo assim a fase da pós-pandemia. Para isso, vamos precisar ampliar o grau de colaboração internacional, instituições de saúde internacionais, isso pode trazer um tipo de mudança institucional de um planeta mais cooperativo.

Não sei se a crise de 1929 se relacionou com a montagem de sistemas de bem-estar social mais ou menos limitados em espaços nacionais. Será que esta vai nos trazer elementos internacionais no sistema de bem-estar social? Por que não? Crise, como está tudo questionado, chacoalhado, há possibilidade de elementos alternativos e que vão contra a deterioração da desigualdade. Crise é momento de transformação global, estrutural, não temos nem noção de onde está o fundo do poço, precisamos de plano Manhattan internacional para gerar vacina global e depois coisas mais ofensivas do que o Plano Marshall para recompor a dinâmica global.  É uma possibilidade. Mas nada está definido.


Grazi Mendes
professora, diretora de uma empresa multinacional de tecnologia e ativista pelas causas da diversidade e inclusão 

‘‘A pandemia veio e produziu uma lupa, e evidenciou no 
contexto brasileiro uma série de fragilidades que temos’’

Que tipo de desafios a pandemia trouxe para os modelos de trabalho? 
Antes da pandemia já discutíamos um futuro do trabalho que excluía muita gente. Já discutíamos os impactos da utilização e digitalização de uma série de profissões e como isso já nos colocava em relação ao desemprego e às ocupações e à saída de uma série de pessoas do mercado de trabalho. A pandemia veio e produziu uma lupa, e evidenciou no contexto brasileiro uma série de fragilidades que temos.


Não só em relação à informalidade, mas à invisibilidade de milhões de pessoas sem acesso à tecnologia. O abismo em relação às questões de educação que estamos enfrentando agora, que estão sendo desafiadas, e há uma parte significativa da população sem aula há quatro meses.  A pandemia joga na nossa cara o atraso em relação ao acesso à tecnologia e o desenvolvimento de habilidades de uma parte significativa da população.

Como lidar com o aprofundamento da desigualdade no âmbito educacional na pós-pandemia?
O Brasil sempre foi país muito desigual e neste momento isso está muito evidenciado. Estamos trabalhando junto da campanha para o adiamento do Enem, e temos realidades extremamente distintas, com pessoas que não têm um dispositivo para estudar. A questão não é só apenas o acesso à internet. Temos um terço da população sem acesso à internet, o que cria uma série de barreiras ao conteúdo, ao desenvolvimento de uma série de habilidades, que é o letramento digital.

Mas estamos falando sobre um agravamento de outras questões. Sou cofundadora de um projeto no Morro do Papagaio, que é exatamente preparatório para o Enem. E ao conversar com as pessoas, mesmo a gente pagando a internet, elas não têm dispositivo para fazer esse acesso, estudar; não têm um notebook; as condições que têm em casa, sem espaço para reservar ao local de estudo, o que dificulta na atenção e na aprendizagem. Isso faz com que a barreira seja ainda maior.


Então, são várias camadas que neste momento de pandemia estão evidenciadas, provocando esse distanciamento, esse abismo ainda maior entre quem tem acesso ao ensino não presencial e quem não tem. O abismo entre diferentes mundos se amplia neste momento. Essa é dívida que vamos carregar por muito tempo, pois é processo de excluir ainda mais quem já estava excluído dessas conversas, desse futuro tecnológico que vínhamos construindo.

Face a essa exclusão que se aprofunda, e pensando também nas mortes violentas que impactam muito mais as periferias, pessoas pretas e pobres, o Brasil pode dispensar tamanho potencial criativo humano?
Esse é um aspecto central: o desperdício do potencial criativo e humano que está presente e completamente abandonado, principalmente nas periferias. Jovens, meninos e meninas, na luta pela sobrevivência, no contexto de muita falta, que vêm encontrando soluções, vêm encontrando caminho para resolver problemas complexos. E essas são habilidades extremamente importantes para o contexto que temos. Esses grupos são totalmente invisíveis e desprovidos de qualquer olhar nessa perspectiva de construção de um projeto de país.

É um projeto que joga na rua, que perde, mata e violenta esse potencial criativo que temos e está excluído do acesso de oportunidades. Sabemos o que acontece na vida de uma pessoa quando tem acessos e oportunidades, o que ela pode se tornar. Falo de minha própria história. Sou negra, de periferia, e filha de empregada doméstica. Nesses espaços você tem a redução do sonho, onde as pessoas se mantêm em profissões hereditárias: a filha da empregada é treinada para ser a empregada da filha da patroa.


E é um desperdício quando falamos em ampliar o acesso à educação, ampliar o acesso principalmente à universidade, que deveriam ser ferramentas para a redução de desigualdades, isso precisa estar na pauta e numa pauta mais ampla. Eu tive 0,4% de chance de ter a história que tenho e de hoje ocupar papel de líder numa empresa global de tecnologia. E a pergunta é: por que tão poucas?. Por que aproveitamos tão pouco esse potencial? Sem intencionalidade não vamos trabalhar com essas alavancas que podem aproveitar o potencial criativo que está completamente desperdiçado.

Inteligência artificial e futuro do trabalho: há espaço para essa discussão neste contexto de mundos paralelos que não se cruzam?. De quantos Brasis estamos falando? 
Essas são as perguntas e precisamos colocar o futuro no plural, já que o futuro não existe, o futuro a gente cria, podemos nos mobilizar para criar realidades que vão criar futuros mais plurais e mais inclusivos e, consequentemente, mais interessantes e ricos em termos de potência. Essa questão é central. Estamos discutindo uma inteligência artificial, mas precisamos colocar nesta pauta as burrices humanas, quais são as burrices humanas que estão escancaradas na pandemia e que têm a ver com isso.

Um projeto de futuro para poucas pessoas. Um futuro que exclui, que amplia a desigualdade, e se o futuro que estamos construindo continua fazendo com que 70% das famílias mais pobres do país não tenham acesso básico à internet, e que isso limita e impossibilita a entrada numa universidade, o que muda histórias e gerações; esse futuro não deveria estar sendo para nós. Se o futuro tecnológico que estamos construindo, se a inteligência artificial coloca em condições precárias e subumanas de trabalho, como temos assistido agora, e como estamos nos dando conta de que por detrás dos aplicativos de entrega há pessoas jogadas sem o mínimo, sem direitos, sem poder ter segurança, tendo de optar entre se expor ao vírus e garantir o seu sustento básico.


Com esse futuro a gente precisa de chorar. Que futuro é esse? Pra quem é esse futuro? Quem é que ganha com esse futuro? Achei muito interessante a proposição de conversas sobre perguntas e quais perguntas podemos fazer neste momento para ampliar nossa consciência sobre que futuro é esse que estamos construindo e como podemos criar realidades e futuros no plural para, de fato, utilizarmos a tecnologia com o potencial que ela tem, mas para trazer mais pessoas juntas e não continuar ampliando esses abismos.

Essa discussão precisa ser ampla, e precisamos incluir vários atores e a sociedade, pois é uma discussão complexa e pede chamado coletivo de mudanças