Jornal Estado de Minas

IDENTIDADE DE UM GÊNIO

Conheça o verdadeiro Machado de Assis: negro e crítico da escravidão

Rio de Janeiro, 1838. A capital do Brasil tem 300 mil habitantes, grande parte escrava, está iluminada por lampiões a azeite de peixe, tem transporte precário por tração animal e ambiente insalubre pelas ruas estreitas. As belezas naturais estão sufocadas pela falta de higiene.



Apenas quatro canais levam esgotos para o mar e os mangues. Não existem fossas sanitárias. Dejetos domiciliares, incluindo fezes, são levados para as praias em carroças ou em tonéis carregados na cabeça por escravos (os chamados tigres, de quem todos fogem apavorados por causa do cheiro nauseante e do receio de um tropeço ou esbarrão que pode respingar fezes nos pedestres e nas ruas).

Doenças epidêmicas matam muita gente. Os morros abrigam estabelecimentos militares, ordens religiosas e os ricos, com suas chácaras e casarões (os pobres serão expulsos para lá apenas a partir da virada do século 19 para o 20). O Morro do Livramento abriga uma grande família rica de origem portuguesa, com muitos agregados e escravos. Um dia, chega ali o pintor de paredes e dourador Francisco José de Assis, “pardo forro”, de 32 anos, para prestar serviço.

Logo conhece e se apaixona pela imigrante açoriana Maria Leopoldina Machado da Câmara, de 26, que veio menina com a família para o Brasil, costura, borda e faz outros trabalhos como agregada no casarão. Eles  se casam em 19 de agosto e, 10 meses depois, em 21 de junho de 1839, nasce Joaquim Maria Machado de Assis, que recebe o nome em homenagem aos padrinhos. O garoto terá infância pobre e difícil, porque a mãe morrerá de tuberculose quando ele tiver 9 anos, e também sofrerá crises de epilepsia.



Sua educação será deficiente, mas compensada pelo autoditatismo de um jovem obstinado pelas letras. Essa narrativa resumida em outras palavras é do biógrafo R. Magalhães Júnior.

Rio de Janeiro, 1908. Em meio ao alargamento das avenidas e às medidas de saneamento para combater epidemias, o consagrado escritor Machado de Assis, fundador e presidente da Academia Brasileira de Letras – que revolucionou a literatura brasileira com realismo e forte crítica social em obras fundamentais como Dom Casmurro, Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba –, acaba de falecer, aos 69 anos, em 29 de setembro.

Apesar da vitalidade de sua obra para escancarar a escravidão e o racismo e das feições afrodescendentes delineadas por sua máscara mortuária, em seu atestado de óbito vai constar que ele era branco. Assim, começa a construção de uma farsa. Branco, elitista, um “europeu heleno”. E mais ainda: na visão de seus críticos, indiferente à escravidão em sua vida e em sua obra.

Durante um século, esse será o perfil de Machado de Assis imposto por uma elite branca à cultura brasileira. Afinal, como o maior escritor brasileiro poderia ser afrodescendente num país com racismo estrutural?, indaga o professor Eduardo de Assis Duarte, do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários, da UFMG.





Para afastar de vez essa falácia biográfica e resgatar o Machado verdadeiro, Assis Duarte acaba de lançar a terceira edição, revista e ampliada, do livro Machado de Assis afrodescendente. Durante cinco anos, ele se debruçou sobre a obra do escritor carioca para escrever uma antologia completa sobre a afrodescendência machadiana, reunindo crônicas, contos, críticas de teatro publicadas em jornais, poemas e trechos de romances sobre o tema. Compõem a obra também detalhadas análises críticas dos textos de Machado relativos à questão étnica.

O resultado é uma obra brilhante, perene e singular, digna de consulta para o meio acadêmico e essencial também para o leitor comum sobre a extensa e profunda crítica de Machado à elite branca, à escravidão e a outras injustiças do seu tempo. Com análises concisas e exemplos contundentes, o professor Assis Duarte desconstrói o perfil branco e europeu de Machado e, mais ainda, o propalado absenteísmo em relação à escravidão, ao racismo e ao sistema produtivo reinante.

“Indagar a respeito da porção afrodescendente de Machado de Assis até recentemente soava estranho para muitos de seus leitores. Não só as literaturas lusófonas do século 19 foram, desde sempre, consideradas espaço esteticamente branco, onde pontificam heróis construídos a partir de uma perspectiva europeia, portadora quase sempre de uma axiologia cristã, mas, também a própria tradição literária que vige no Brasil nos remete à Europa e não à África”, diz o professor na obra.




BARBA E BIGODE

Os disparates para camuflar a real identidade de Machado de Assis são impressionantes. “Afirmou-se inclusive, que o uso de barba e bigode, quase obrigatório entre os homens do seu tempo, teria como objetivo o disfarce dos traços negroides. Isso sem falar dos polêmicos retoques para clarear a pele nos estúdios dos fotógrafos da época”, lembra Assis Duarte.

“Tais lugares-comuns, somados à ausência de um herói negro em seus romances, fundamentam em grande medida a tese do propalado absenteísmo machadiano quanto à escravidão e às relações interétnicas existentes no Brasil do século 19”, avalia o autor.

Ao longo do século 20, foram cometidos muitos equívocos sobre a descendência e a obra de Machado, lembra o professor, principalmente devido ao estilo dissimulado em tratar temas como a escravidão em sua obra. “De fato, nada mais adverso à escrita de autor-caramujo, especialista em disfarces de toda ordem, do que o projeto de uma literatura missionária e panfletária”, ressalta.





Afrodescendente em pleno período escravista, escrevendo em jornais lidos pela elite, trabalhando em empregos públicos e vivendo de aluguel, era natural que Machado não tivesse uma atuação militante e panfletária, ressalta Assis Duarte. Caso contrário, certamente, seria perseguido. A opção, então, veio na fina ironia e na dissimulação como “autor-caramujo” em suas obras para denunciar a escravidão.

O livro de Assis Duarte destaca, então, trechos representativos do tema em Ressurreição (1872), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), Casa velha (1886), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1901) e Memorial de Aires (1908) e ainda de crônicas, contos e poemas de todas as fases da vida de Machado.

Essa edição ampliada inclui, inclusive, o conto A mulher pálida, a curiosa história de um rapaz que procura a mulher mais pálida do mundo para se casar, uma sátira à eterna obsessão brasileira pela branquitude europeia.





“O tom do discurso machadiano é corrosivo. Engendra contranarrativa ao pensamento hegemônico da época – cuja ideia mestra entronizava o ‘escravismo benigno’ praticado nos trópicos pelo colonizador à miscigenação. Tal ideologia se aprimora ao longo do século 20 e prima por construir uma leitura do nosso passado histórico em que o tempo do cativeiro surge emoldurado pelo mito da democracia racial – a substituir a brutalidade pela tolerância e o rebaixamento do outro pela mestiçagem”, aponta Assis Duarte.

Outro exemplo da postura contrária de Machado ao sistema então vigente é o racismo brutal apresentado no conto Pai contra mãe, que mostra como um capitão do mato (caçador de escravos foragidos), obrigado a entregar o filho recém-nascido para adoção por não ter como sustentá-lo, captura uma escrava fugitiva e fica indiferente quando ela aborta na sua frente.

Sua reação é: “Nem todas as crianças vingam”. Se isso não for denúncia contra a escravidão, o que será? Essa era a forma de Machado, sem ser militante, denunciar as atrocidades escravistas do seu tempo.




TRECHO DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS

“Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – ai, nhonhô! 

– ao que eu retorquia: – Cala a boca, besta! (…) Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: –  Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!  Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

– Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!

– Meu senhor! gemia o outro.

– Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Pare, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se e pediu-me bênção, perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

– É sim, nhonhô.

– Fez-te alguma coisa?

– É um vadio, um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda enquanto eu ia lá na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

– Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

– Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra pra casa, bêbado!”

MACHADO DE ASSIS AFRODESCENDENTE
De Eduardo de Assis Duarte
Editora Malê
352 páginas
R$ 68