Jornal Estado de Minas

ENTREVISTA

Filósofo faz alerta e ressalta importância da ética: 'A barbárie está à solta'

(foto: TV Minas/divulgacao)
A parte civilizada da sociedade brasileira está inerte, sem reação diante do comportamento bárbaro e antiético de uma minoria ruidosa que debocha dos mortos pela Covid-19, faz buzinaços contra o isolamento social e se recusa a usar máscaras em espaços públicos.


A avaliação é de Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor do livro A boa política - Ensaios sobre democracia na era da internet (Companhia das Letras). Para ele, nem se trata de liberdade individual para desrespeitar o uso da máscara e medidas de isolamento social. Mas, antes, é uma questão de sobrevivência coletiva, de uma obrigação moral.

“A ética cumpre um papel fundamental no cenário atual, inclusive sobre a difícil escolha dos médicos, que, sem leitos e respiradores para todos, precisam decidir quem salvar. Agora, para chegar ao momento da escolha difícil, não se pode simplesmente aceitar que as pessoas vão morrer. A obrigação ética está em fazer de tudo para que isso não aconteça”, afirma ele.

Em crítica ao negacionismo que norteia decisões do governo Bolsonaro, como o novo protocolo para uso da cloroquina contestado por cientistas, médicos e organismos internacionais, o ex-ministro da Educação no governo Dilma Rousseff afirma: “O desprezo à vida é um traço assustador num governante”.


 Sob o ponto de vista filosófico, o que explica o comportamento de certos segmentos da sociedade brasileira que desqualificam a gravidade da doença, se recusam a usar máscaras e explicitam a falta de empatia com as milhares de mortes com danças com caixão, buzinaços na porta de hospitais e aglomerações em manifestações?
A primeira coisa que chama a atenção é o seguinte: no caso do vídeo do restaurante de Gramado, como é que seres humanos se prestam a um deboche desses? Não têm valores éticos? E por que no restaurante, quando aconteceu, o público que estava lá não protestou, não reagiu? E as pessoas que atacaram as enfermeiras na frente do Palácio do Planalto, não têm valores morais? Veja o caso das máscaras. Quando alguém diz ter o direito de usar ou não a máscara ao seu arbítrio, ignora que a máscara não é para eu me proteger dos outros, e sim para proteger os outros de mim.

A máscara não é um direito, é uma obrigação moral. Então, não é uma questão de liberdade individual, mas de sobrevivência coletiva. E não vou dizer que nesses casos a sociedade prevalece sobre o indivíduo. O que prevalece é a humanidade, é a ética. O que está errado é o egoísmo. A ética cumpre um papel fundamental no cenário atual, inclusive sobre a difícil escolha dos médicos, que, sem leitos e respiradores para todos, precisam decidir quem salvar. Agora, para chegar ao momento da escolha difícil, não se pode simplesmente aceitar que as pessoas vão morrer.

A obrigação ética está em fazer de tudo para que isso não aconteça. Questões éticas estão ligadas a fazer o bem, mas quando já se parte do princípio de que você vai aceitar o mal, então você já saiu do plano ético. Acho que o mais grave é que essas situações antiéticas absurdas acontecem e não vejo uma reação forte a esse tipo de conduta. O público não aparece para dar limite.


A barbárie está inteiramente à solta.  E as pessoas civilizadas, que ainda acho que são a maioria, não têm reação, não manifestam uma atitude de resposta, de impedimento disso.  Acho que a parte civilizada da sociedade brasileira, que ainda acho que é a maioria, está muito calada. Inerte, sem reação, não manifesta uma atitude de resposta, de impedimento disso.  
 
A bandeira nacional foi apropriada por esses movimentos de extrema-direita e amplamente usada em manifestações antidemocráticas. Como o sr. interpreta o uso deste símbolo nacional nestes protestos, que estão restritos a um segmento de radicais barulhentos, embora se apresente como “nação”?
A bandeira e todos os símbolos nacionais representam uma união que se tem para além dos partidos políticos. Existem nos estados democráticos, porque se aceita que a sociedade esteja dividida; aceita-se ser legítimo ter partidos de direita e de esquerda, mas ao mesmo tempo se diz há um ponto em que estamos todos unidos: por exemplo, torcer pela Seleção nacional; no caso britânico, admirar a rainha da Inglaterra.

Então, chamar o partido de Aliança pela Alemanha – nome do partido fascista alemão; Aliança pelo Brasil, dizer “o meu partido é o Brasil”, tudo isso é um equívoco gigantesco. Significa dizer que o outro lado não seria autenticamente brasileiro. Usar camisetas brasileiras em manifestações políticas é negar às pessoas que divergem de você o direito de usá-las, é como dizer que seriam “maus brasileiros”.

É extremamente grave. Significa não apenas dizer “nós somos patriotas”, mas negar que os outros sejam, que podem ser tanto ou mais até patriotas que estes que se manifestam, mas apenas veem caminhos e orientações diferentes, o que é legítimo, divergência legítima. Por isso, o uso de símbolos nacionais em manifestações políticas tende a ser antidemocrático, por ser uma apropriação por um grupo, um partido, de um símbolo que é de todos.


 
O presidente da República faz campanha e apregoa a cloroquina, anunciando-a como a “cura” para uma doença, sem que de fato haja evidências científicas. Inclusive, fez o Ministério da Saúde divulgar um novo protocolo para o seu uso. Como o sr. avalia esse comportamento?
Temos enorme avanço da ciência hoje. Os cientistas têm forma de pesquisar, protocolos. Não pode um leigo determinar qual é a solução para um problema de saúde. Pode, quando muito, devidamente aconselhado por especialistas, tomar decisões políticas de base científica. Por exemplo, o confinamento é uma decisão política com base em orientação científica. Agora, um leigo total pegar um medicamento sobre o qual não há evidências científicas e determinar que tem de ser usado é absurdo.

É a negação da ciência, a negação do conhecimento, o que é muito grave se ter em sociedades que são do conhecimento, em que o avanço, inclusive econômico, depende da ciência, é muito grave ter um governante que é contra a ciência e que coloca em risco a vida das pessoas. E diz, com frequência, que vão morrer pessoas, que é normal. Não manifesta pêsames, preocupação com isso. Esse desprezo pela vida é um traço assustador num governante.
 
 O senhor foi ministro da Educação em 2015. Como avalia a recente declaração do atual ocupante da pasta, Abraham Weintraub, de que o Enem não foi feito para corrigir injustiças, mas para selecionar os melhores?
Antes de mais nada, ele confundiu o Enem com o Sistema de Seleção Unificado (Sisu). O que corrige desigualdades é o Sisu. O Enem é exame que dá nota. Não existe cota nem política afirmativa no Enem, que busca aferir o melhor possível o conhecimento que o aluno adquiriu. O Enem é uma foto do aluno no final do ensino médio.


Mas você precisa ter o filme todo para ver qual é o aluno que merece entrar na vaga, não basta a fotografia. Exemplo: a nota média no Enem varia em diferentes estratos socioeconômicos. No nível socioeconômico mais baixo, a nota fica em torno de 420; no nível socioeconômico mais alto, a média é 610. Então, para avaliar o merecimento do aluno, não posso apenas olhar a nota. Uma nota 500 para uma pessoa muito pobre é esplêndida, significa que estudou muito, teve um merecimento grande.

Os mesmos 500 para uma pessoa rica, em que a faixa média seria de 610, indica que não é um bom aluno. Isso é o que o Sisu vai considerar, quando entra a política de ação afirmativa, a política de cotas. Essa política vai permitir ver, aí sim, fazer a inclusão social, e aí sim, dizer quem é melhor. Então ele confundiu duas etapas. Além disso, o Enem não vê quem é melhor. Vê a nota.  A nota é o resultado, mas tenho de saber qual é o insumo.

Se o aluno é muito pobre, o insumo foi mais baixo, então o resultado mais elevado desse insumo é um mérito. E aí, então, o Sisu faz a avaliação de mérito, que não é simplesmente a fotografia do Enem.



O que explica em sua avaliação a obsessão e implicância dos apoiadores de Olavo Carvalho a Paulo Freire, que é estudado nas 20 melhores universidades do mundo e tem até hoje a obra na área da educação mais referenciada?
A educação é internacionalmente reconhecida como elemento de emancipação. Em todos os sentidos: pela educação você encontra o seu caminho na vida pessoal. O governo não gosta disso. Acha que, se encontrar o seu caminho, você pode mudar de gênero. Ele também é contrário ao caráter emancipatório da educação na profissão.

Embora diga que seja importante formar pessoas nas áreas tecnológicas, não faz nada para isso.  Em todos os centros de educação do mundo, é atribuída grande importância à formação em ciências humanas, em todas as áreas do conhecimento: o Massachussets Institute of Technology (MIT), por exemplo, não quer engenheiro ou físico que não leu ou estudou nada de filosofia. Não se pode governar uma sociedade sem conhecer ciência, o que inclui a ciência da sociedade e das relações humanas.

Se você não leva isso em conta, você não sabe governar, já que as contribuições das humanidades são imensas, e vão desde a superação das desigualdades sociais a outras questões mais conceituais.  E o terceiro aspecto do benefício da educação é melhorar a cidadania; estar cônscio de seus direitos e deveres. Há uma ideia neste governo de que é ruim aquilo que mundialmente é considerado a bênção da educação.  Este governo foi eleito contra a educação.


Se olhar a campanha eleitoral dele, em nenhum momento prometeu melhorar a educação. Por essa razão, aquilo que existe de mais avançado na educação, que é o Paulo Freire, foi questionado por Bolsonaro. E por isso mesmo os projetos de educação desse governo são no sentido de destruir o que foi feito no passado. Não de construir. São contra a ideia da educação como emancipação.

Há um certo saudosismo da parte de alguns, com declarações do tipo: “No passado, a educação era melhor”. Como evoluiu a educação no Brasil?
 Se pegarmos a educação como um todo, existe uma ilusão de que no passado a educação era melhor. É ilusão, porque pouca gente tinha acesso à educação formal. A Constituição de 1946 foi a primeira a prever educação obrigatória. Era o chamado grupo escolar, que tinha quatro anos apenas, deste que hoje é o Fundamental 1, que tem cinco anos. Os alunos começavam aos 7 anos e quando entravam no grupo escolar, eram reprovados à taxa de 50%.

Além disso, prestavam exames para o ginásio, o atual Fundamental 2, e ao fazer isso eram discriminados. Dizer que era melhor no passado, era melhor para uma minoria. Havia quatro anos de escolaridade obrigatória, altos índices de reprovação. Quem terminava o ensino público podia ter educação boa, mas uma parte era liquidada. 


 
A partir do atual contexto político, social e econômico, que futuro projetar para o Brasil?
O futuro do Brasil está muito comprometido. O Estado está numa direção totalmente diferente de uma sociedade moderna, humana, qualificada. Além disso, em vez de ser capaz de tomar liderança para as mudanças que precisa fazer, o governo não as faz. O que choca nisso tudo, é a falta de mobilização da sociedade. É claro, estamos com o coronavírus, não podemos sair nas ruas, fazer manifestações. Mas a sociedade está muito pacata. E nosso país perdeu a reputação internacional, reputação que foi tão difícil de conquistar