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Estado de Minas

De perto, somos todos horríveis

A partir das ideias do existencialista francês Jean-Paul Sartre, psicólogo mineiro questiona os padrões de ética na sociedade brasileira e avalia: "A humanidade do humano está morrendo e somosnós os seus exterminadores%u201D"


postado em 08/05/2020 04:00

Ronny Francy Campos
especial para o em

O alerta de Sartre ecoa no século 21:
O alerta de Sartre ecoa no século 21: "O inferno não está distante de nós. Você e os outros são o meu inferno" (foto: arquivo em)
Nessas duas primeiras décadas do século 21, assistimos in loco ao que o filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) considerou como o verdadeiro inferno. Sartre alertava: “Não pensem que o inferno seja algo tão distante de nós. Não fiquem a imaginar fogueiras, grelhas, diabos e tridentes. O inferno não é nada disso. O inferno é aqui mesmo. E o diabo é ‘você’. É o ‘outro’. Você é o meu algoz. ‘Você’ e os ‘outros’ são o meu inferno”.

À época, isso não faz muito tempo, algumas pessoas chegaram a dizer: esse cara “pirou” de vez. E agora – alguns anos depois – nós, que pensamos escapar da “piração sartreana”, estamos assistindo ao vivo e em cores, quase que diariamente, ao diabo pondo a mão nos mais variados empreendimentos humanos. Neste momento, bem de perto, nós o vemos atuando em política e educação, em ciência e arte, em medicina, arquitetura, administração, engenharia etc.

O diabo, para quem ainda não o conhece, ou pensa que ele não existe, é o mestre do disfarce. É pretensioso, ambicioso, sedutor e enganador. Seu lema é prometer, induzir e impor sem parar. Suas ferramentas são: simplificação, manipulação e distorção.

Curiosamente, neste novo milênio, ouvimos dizer que a política profissional brasileira está uma vergonha. Que a educação, em todos os níveis, vem somando fracassos e que a prática atual da medicina nunca esteve tão visivelmente mercantilista.

Distraidamente, emergem curiosas questões: quem faz a política, a educação e a medicina brasileira?. Essas perguntas evidenciam que a nossa comunidade embarcou num surto coletivo de amnésia. Será que já não sabemos mais que a sociedade, enquanto corpo social, somos nós? Que a educação sistematizada é composta pelos mais diversos atores sociais? E que a medicina é exercida por pessoas com nomes próprios, registros acadêmicos e obrigatoriamente inscritas num conselho profissional?

Então façamos as devidas ressalvas: se há uma política que vem sendo considerada um lixo, esse lixo somos nós. Se o modelo educacional atual, em todos os níveis, está fracassando, o fracasso é nosso. E se a medicina, enquanto ciência e profissão, desviou dos seus propósitos básicos, fomos nós que permitimos.

De acordo com Sartre, o homem poderia ser cognominado o “avaliador”. É ele quem avalia. E é ele também o seu próprio objeto de avaliação. Nós, cada um de nós, somos o “avaliador/avaliado”. E a avaliação para a crise que vivemos neste momento é ditada, em todos os segmentos socioculturais, na forma antipática e já batida de um clichê. Tem sido dito que a crise atual não é política, não é econômica e não é sabe-se lá mais o quê. A crise atual, alertam os avaliadores/avaliados, é uma crise ética.

Estamos ouvindo isso já há algum tempo e a maioria dos cidadãos brasileiros não sabe nem o que é ou do que se trata essa tal de ética. E, enquanto isso, nossos políticos continuam aproveitando da desinformação generalizada do “seu” povo (e a sociedade tornando-se cada vez mais lixo). Os educadores, evidentemente, não todos, continuam fazendo cursos e mais cursos de qualificação no exterior e a educação brasileira, cada vez mais, só “afundando”. Nossos médicos, também aqui, logicamente não são todos, equipam cada vez mais seus consultórios com equipamentos eletrônicos de última geração e, simultaneamente, a saúde integral das pessoas deste país só está piorando. 

Logo, algum outro distraído quer saber: onde está a ética? Onde se enfiou essa maldita responsável e culpada pela nossa humilhante situação?. A resposta não demora a surgir. A ética somos nós. Somos nós que nos candidatamos a cargos públicos e, depois de eleitos, não cumprimos nossas promessas. Somos nós que pleiteamos bolsas de estudos para o exterior, e, depois que a conseguimos, nos esquecemos dos nossos preciosos motivos. Também somos nós que nos candidatamos aos concorridos cursos de medicina e que nos propomos, acima de tudo, a tratar do humano. Entramos apertados para as universidades, realizamos o curso suando frio devido à sua seriedade e complexidade. E logo, imediatamente após a formatura, desprezamos, sem a mínima distração, a filosofia de Hipócrates. E agora, sem as mesmas dificuldades e propósitos, abandonamos a “nobre” escolha.

É, Sartre parece ter mesmo razão. O inferno não parece estar muito longe daqui. A humanidade do humano está morrendo e somos nós os seus exterminadores. Realmente, o que se observa é que estamos todos sofrendo seriamente de um grave distúrbio de memória. Esquecemos os fatos e as “coisas” muito rapidamente. Somos evidentemente um povo sem memória. Como se diz na boa gíria: “Somos fracos da ideia”.

E somos mesmos. Esquecemos, inclusive, que há pouquíssimos dias um sobrevivente de um campo de concentração deixou-nos uma carta que nem de longe sensibilizou nossos governantes. Sua carta foi endereçada aos políticos, médicos e responsáveis pela educação de qualquer país. Ele dizia mais ou menos assim:

“Prezados senhores, sou um sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria ver. Câmaras de gás construídas por engenheiros formados; crianças envenenadas por médicos formados; recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas; mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados em colégios e universidades. Assim, francamente, tenho minhas suspeitas sobre a ética, sobre os políticos, sobre os médicos e principalmente sobre a educação. Meu pedido é: ajudem as pessoas – seus ‘governados’, ‘pacientes’, ‘alunos’ – a se tornarem humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados, psicopatas hábeis. Ler, escrever, aritmética, biologia, filosofia, psicologia etc. só são importantes se servirem para fazer nossas crianças mais humanas.”

Enfim, o momento pede uma minuciosa e criteriosa reflexão e revisão em nossas práticas. Precisamos rever nossas teorias, ações e posturas. Precisamos, urgentemente, de nos tornar mais solidários.

Ou, então, caso isso não seja interessante, ou mesmo possível, sem qualquer pudor, que confirmemos assim, definitivamente, nossa condição de vermes. Com isso, sem maiores culpas, logo após a nossa morte, que passemos, então, a ser simplesmente alimento para nossos próprios irmãos. 

Ronny Francy Campos é psicólogo clínico e professor da PUC Minas em Poços de Caldas


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