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Duas mulheres, muitas vidas: biografias mostram face humana de Susan Sontag e Simone de Beauvoir

Com abordagens diferentes, mas igualmente fascinantes, os biógrafos Benjamin Moser e Kate Kirkpatrick traçam em minúcias a trajetória de duas influentes intelectuais do século 20: Susan Sontag e Simone de Beauvoir


postado em 24/04/2020 04:00 / atualizado em 24/04/2020 09:48


Em tempos de reclusão imposta pela covid-19, quem se aventurar a ler as biografias Sontag: vida e obra, de Benjamin Moser, e Simone de Beauvoir: uma vida, de Kate Kirkpatrick, perceberá muitas similaridades nos perfis das intelectuais que muito contribuíram para mudar formas de ver e pensar questões essenciais da cultura no século passado. Poderá também confirmar o quanto permanecem vigorosas inúmeras ideias dessas filósofas – a primeira, norte-americana nascida em 1933 e morta em 2004; a segunda, francesa que viveu de 1908 a 1986. 

Moser defende que Sontag refletiu de maneira ímpar sobre praticamente todos os grandes temas da cultura – guerras, holocausto, estética, fotografia e cinema, artes plásticas, literatura, psicanálise, marxismo, drogas, enfermidades, feminismo, homossexualidade, ataque às Torres Gêmeas. Garante ainda que ela foi, entre todos os escritores norte-americanos, a única que seguiu – e também historiou – todas as transmutações na revolução que se operou ao longo do século 20 em relação à forma como a fama é adquirida e percebida. “Criada à sombra de Hollywood, Sontag buscou reconhecimento e cultivou sua imagem”, refletiu.  

Kirkpatrick demonstra a importância de Beauvoir como filósofa complexa e mostra como se deu a construção de seu pensamento, sendo este último aspecto algo nunca estudado. Descobre-se a independência e a originalidade de um pensamento cultivado desde muito jovem. Segundo ela, Beauvoir viveu uma vida épica, tendo transgredido todas as hierarquias de gênero na prática e na teoria, pois tentou viver de acordo com o que sentia. “Os pensamentos dela eram profundamente desafiadores para seus contemporâneos, e foram silenciados, ridicularizados e desprezados”, avaliou.  

Sontag escolheu o ensaio como meio preferencial de expressão, tendo também lançado romances, escrito roteiros e atuado em filmes, além de dirigir peça de teatro – em plena Sarajevo sitiada. São de sua autoria obras referenciais como Sobre fotografia, Contra a interpretação e outros ensaios (que acaba de ser reeditada no Brasil, pela Companhia das Letras), Doença como metáfora, A vontade radical, Diante da dor dos outros e Sob o signo de Saturno. Em todas, observa-se o trânsito do “erudito ao vernacular”, conforme expressão de Moser, e a compreensão de que “o mundo é, em última análise, um fenômeno estético”, usando palavras da biografada.

Autora de ensaios filosóficos sobre ética e política, como Ética da ambiguidade, de romances, sendo os mais conhecidos A convidada e Os mandarins, e de peça de teatro, Beauvoir foi das mais ativas intelectuais da França pós-Segunda Guerra Mundial. Diretora da revista Tempos Modernos, criada por Jean-Paul Sartre, seu parceiro amoroso por toda a vida, e Maurice Merleau-Ponty, ela começou a publicar ali os textos que resultaram em seu livro mais conhecido: O segundo sexo, lançado em 1949. Inicialmente rechaçado, décadas depois se tornou um clássico feminista. 

Quem ler as biografias das duas intelectuais poderá levantar terceira camada de interpretação, qual seja, sobre formas de escrever uma biografia, complexo gênero narrativo na medida em que obriga ao exercício de penetrar na intimidade alheia sem perder a distância necessária em relação à personagem pesquisada. Moser e Kirkpatrick produziram obras que serão para sempre referenciais. Apresentam fascinantes retratos das pensadoras, que se distinguem no tratamento dado aos seus objetos de pesquisa. Exibem filiação a escolas diferenciadas do fazer biográfico, a americana e a inglesa. 

A narrativa do norte-americano Moser busca uma espécie de superolhar interpretativo que, às vezes, chega a parecer falta de empatia com Sontag. Ele, doutorado em história, que já havia escrito importante obra do gênero: Clarice, biografia de Clarice Lispector, foi escolhido por David Rieff, filho de Sontag, para escrever o livro. Portanto, autorizado a pesquisar o imenso arquivo da escritora, vendido por ela à Universidade da Califórnia, material em grande parte inédito. Talvez, Moser, para reforçar o distanciamento e demonstrar que não se trata de uma “biografia autorizada” – o que de fato não é –, tenha reforçado o tom crítico presente em todo o monumental trabalho de associar a vida à obra da filósofa.

Já a inglesa Kirkpatrick, sem abrir mão da forte capacidade de análise, se aproxima de Beauvoir de maneira mais acolhedora. Ela, doutora em filosofia e teologia, especializou-se na obra de Sartre e Simone de Beauvoir, para só então partir para o relato biográfico. É a primeira vez que uma filósofa assina uma biografia da pensadora, construída a partir de seus diários de estudante e da correspondência mantida pela francesa com outros parceiros amorosos, como Claude Lanzmann, material só disponibilizado em 2018. A afinidade teórica entre biografada e biógrafa favoreceu o tom de proximidade usado para demonstrar a complexidade do pensamento da escritora.     

Com domínio de estratégias narrativas sofisticadas, ambos os biógrafos escolheram apresentar de maneira cronológica a vida de suas personagens, evocando cenas do passado relacionadas ao presente. Para os que gostam de detalhes picantes, os livros estão recheados deles. Nenhum dos dois deixa de relacionar amores, traições, condutas consideradas socialmente inadequadas, comportamentos egoístas das duas filósofas. Assim como também são apontados atos de generosidade, amizades e colaborações. Situações que não serão detalhadas nesta resenha. Sentirá mais prazer quem as buscar na leitura dos livros. 

Kirkpatrick é conscientemente cautelosa na abordagem que faz, a começar pelo título, que não separa vida e obra. Em sua apresentação, ela diz que foi intimidador e até mesmo “aterrorizante” escrever o livro e acrescenta que não incluiu “todas as palestras, todos os amigos nem todos os amantes”. “Tentei”, explicou na introdução, “mostrar todo o espectro de sua humanidade: sua confiança e suas dúvidas, sua energia e seus desesperos, seus apetites sexuais e suas paixões físicas”. 

Moser, no livro, não explica seu método de trabalho, mas, em entrevistas, confessou ter sido assustador escrevê-lo. Embora não explicite suas intenções, fica evidente que se esforçou para produzir o que é chamado, ilusoriamente, de a “biografia definitiva” da intelectual que tinha uma rigorosa  “sede de realidade”. “Em vez de insistir que o sonho era tudo o que havia de verdadeiro”, escreveu Moser sobre Sontag, “passou a perguntar como contemplar até mesmo as realidades mais medonhas, aquelas da do- ença, da guerra e da morte”. 

Outras abordagens 

Já haviam sido publicadas obras que abordam a vida das pensadoras. Logo que a norte-americana morreu, David Rieff publicou Diários: Susan Sontag – 1947-1963 e surgiram pequenas biografias que resumiam sua existência. Em 1990, Deirdre Bair lançou a primeira biografia póstuma da francesa, Simone de Beauvoir: uma biografia, que contava, inclusive, com entrevistas feitas ao longo de cinco anos com a filósofa. Beauvoir escreveu quatro volumes de sua autobiografia, publicados entre 1958 e 1972, além de existirem outras monografias a seu respeito. Kirkpatrick informa que ela omitiu muita informação. Moser também aponta diferenças entre as anotações dos diários de Sontag e fatos realmente ocorridos. Ambas editaram suas imagens.

O diferencial das recém-lançadas biografias faz-se na abrangência da pesquisa. Moser e Kirkpatrick examinaram com minúcia o material pesquisado, além de recorrer aos textos autorais de cada filósofa. Moser também realizou impressionante número de conversas: ao final do livro, ele apresenta lista de 573 pessoas, explicando, em entrevistas, que muitas delas foram consultadas várias vezes. 

O esforço dos dois escritores requererá coragem do leitor para enfrentar as 704 páginas da biografia de Sontag e as 413 da de Beauvoir. Em ambas, detalhes da vida rotineira aparecem em excesso e, às vezes, se tornam cansativos e supérfluos. Quem lê, entretanto, é também agraciado com a apresentação – ou revisão, no caso dos que já conhecem su- as obras – das principais questões teóricas que desenvolveram ao longo de sua vida.

No caso de Sontag, em função da pandemia que paralisa o mundo, a biografia ajuda a lembrar a atualidade das ideias contidas nos ensaios Doença como metáfora e Aids e suas metáforas, lançados em 1978 e 1988, respectivamente, e publicados mais tarde como um livro só, um estudo que contém dois capítulos. Duas vezes acometida de câncer (morreu em uma terceira recidiva), tendo seu pai morrido de tuberculose quando ela era menina, e, posteriormente, ao observar os efeitos da Aids, Sontag refletiu sobre o imaginário em torno dessas enfermidades. “A doença é o lado noturno da vida, uma cidadania mais cara”, diagnosticou na abertura do primeiro ensaio. Com ela, aprendemos sobre o uso político das metáforas associadas às mazelas que nos acometem – muitas delas metáforas militares.

Neste momento em que vivemos, no Brasil, uma guerra de discursos, em que precisamos nos proteger de narrativas presidenciais absurdas sobre o combate ao terrível novo coronavírus, posso reescutar Sontag condenando o irracionalismo que não respeita a ciência. Revejo a partir dela o quanto o comportamento dos vírus é sofisticado, pois eles transportam informações genéticas, transformando as células e tornando mais difícil o combate a doenças. Característica que resulta em uma mudança fundamental, pois, como ela disse, cresce o número de infecções virais que têm efeitos mais demorados – referia-se, em contraposição, aos efeitos rápidos de uma simples gripe. 

Com Sontag, sou relembrada do horror que, no passado, despertavam a lepra e a sífilis até serem produzidos medicamentos de controle, o que é símbolo de esperança para nossos tempos sombrios. Enfim, no livro sobre as enfermidades, reencontro a intelectual que, negando-se ao academicismo, entregue aos seus ensaios, produzia estudos que percorriam as mais diferentes teorias e recorriam à literatura para colocar em discussão modos e usos da linguagem que afetam nossa existência.   

Diante desse reencontro, reflito que, se em seu ensaio Sontag expõe a forma impiedosa, as metáforas, com que se costuma atribuir ao paciente a responsabilidade por desenvolver determinadas doenças, imagino o que ela diria da pandemia da covid-19. Para ser minimamente controlada, a epidemia global depende não só da ação dos Estados, mas também da responsabilidade de cada cidadão a viver em reclusão, negação de nossa condição gregária. Com o isolamento, a crise econômica se agrava e os Estados demoram em estabelecer políticas de renda mínima na proteção aos menos favorecidos. Diante dessa mudança fundamental na forma de contágio, disseminação, controle e paradigma econômico, reafirmaria Sontag que “as metáforas patológicas têm servido para reforçar as acusações feitas à sociedade por sua corrupção ou injustiça”?, continuo a me indagar.  

De volta às biografias, nelas se descobre que, para além da coincidência da primeira letra de seus nomes e do fato de serem mulheres fisicamente belas, Sontag e Beauvoir foram devoradoras de livros desde crianças e se destacaram pelo precoce brilhantismo acadêmico. As duas relacionaram-se amorosa e sexualmente com homens e mulheres e provocaram o mundo com comportamentos e ideias. 

Sontag, de acordo com Moser, foi a autora do livro mais importante publicado pelo seu único marido, Philip Rieff, intitulado Freud: a mente de um moralista, lançado em 1959. Ela se arrependeu por não ter lutado pelos direitos de autoria. Beauvoir, segundo Kirkpatrick, escreveu artigos publicados sob a assinatura de Sartre em Tempos modernos, devido a uma doença que o acometeu, e ninguém percebeu mudanças de estilo ou de encaminhamento do pensamento. Be- auvoir entendeu o episódio como um compromisso de solidariedade ao parceiro. 

Alcoolismo na família

Ambas tiveram figuras parentais rendidas ao alcoolismo – e, portanto, sofreram consequências das ambivalências afetivas provocadas pelo vício. Moser enfatiza reiteradamente o quanto o fato de Mildred, a mãe de Susan, ter sido alcoólatra, fria e distante, interferiu na incapacidade de Susan de ser mais empática e menos irritante em seus relacionamentos. Interpreta também insistentemente que a dificuldade da escritora de aceitar sua atração por mulheres a fez repetir comportamentos sadomasoquistas – aqui no sentido patológico – em que alternava o papel de dominada ou de dominadora, em relacionamentos caracterizados por imensa tensão. Em especial, no mais duradouro deles, com a fotógrafa Annie Leibovitz, sua última parceira.  

Kirkpatrick também realça dificuldades de Beauvoir com as figurais parentais, ocorridas após uma primeira infância burguesa e tranquila.  Em especial com o pai, Georges, que, empobrecido, se tornou irascível, enquanto a mãe, Françoise, permaneceu excessivamente controladora até a filha sair de casa para completar os estudos. Mas a biógrafa evita vincular esse aspecto aos muitos relacionamentos amorosos que Beauvoir manteve ao longo da vida. Desde o ainda hoje atípico poliamor com Sartre – o texto termina por deixar claro que o forte vínculo dos dois era baseado na amizade, mais que no sexo –; no seu bastante criticado envolvimento com alunas; nos encontros amorosos com o escritor norte-americano Nelson Algren e com o cineasta Claude Lanzmann, o que se descobre é o imenso desejo de Beauvoir de amar de “maneiras sem precedente”, nas palavras da biógrafa.  

Ler a obra de Kirkpatrick evocou reflexões também relativas à covid-19, tema obsedante. Relembrei que, no primeiro contato que tive com a obra de Beauvoir, ocorrido aos 15-16 anos, ao ler O segundo sexo, fatos e mitos, tomei consciência das imensas desigualdades entre homens e mulheres. Sim, muitas delas, após lutas coletivas e individuais, foram amenizadas, mas outras permanecem, reforçando as assimetrias de gênero. A ONU Mulheres, por exemplo, a partir do crescimento do número de casos em países que vivenciam o isolamento social, divulgou alerta sobre o aumento da violência contra mulheres e meninas, no âmbito doméstico, durante a reclusão necessária ao controle da pandemia. Beauvoir, 50 anos depois do lançamento do livro, continua atual. Mulheres, ainda em números expressivos, continuam a não ser consideradas sujeito de seu desejo.

Ainda correlacionando a leitura da biografia com a nossa condição extremada provocada pela pandemia, atual também se faz a releitura de A velhice, ensaio publicado por Beauvoir em 1970. Cheguei à página da biografia que aborda o livro justo no dia em que Jair Bolsonaro propôs que o isolamento social fosse vertical, aplicado apenas aos idosos. Em sua obra, Beauvoir demonstra e critica a marginalização histórica a que são submetidos os idosos. Seu estudo provocou mudanças nas formas de entendimento da velhice. Mas, para alguns, o discurso retrógrado permanece em uso. A proposta do mandatário brasileiro, no lugar de proteger esse segmento populacional, tornaria os idosos mais vulneráveis, pois aumentaria a cadeia de transmissão, visto que a maioria deles convive na mesma casa com parentes mais jovens. Beauvoir refletiu que para muitas pessoas o idoso “não é mais que um cadáver cuja sentença está suspensa”. A fala presidencial enquadra-se nessa linha de pensamento que entende a velhice como descarte, abandono e, portanto, sujeita à extinção forçada, pois já não representa força produtiva. 

Ler as biografias de Sontag e Beauvoir poderá ser exercício alentador para perceber que, a princípio, ambas foram socialmente punidas por falar e viver suas verdades, por alterar cânones, mas que superaram com palavras e afetos (ainda que, muitas vezes, atormentados) barreiras que surgiram. Porque, em tempos tão extenuantes como o que vivemos, ainda é possível aprender, como frisou Kirkpatrick, que “ninguém se torna o que é sozinho”. 

*  Graça Ramos é jornalista e doutora em Historia da Arte


Simone de Beauvoir: uma vida
. De Kate Kirkpatrick
. Crítica/Planeta
. 413 páginas
. R$ 69,90

Sontag: vida e obra
. De Benjamin Moser
. Companhia das Letras
. 704 páginas
. R$ 109,90


Trechos dos livros


O reconhecimento da beleza do mundo traz a consciência de sua fragilidade, a consciência de quanto suportamos perder: a viagem é “simplesmente uma das formas mais desastrosas de amor não correspondido”. E envelhecer em meio a objetos do passado, viajar anos depois de ter viajado, é saber que mesmo os lugares mais lindos não são páreo para o eu desassossegado: “Prisões e hospitais estão repletos de espe-rança. Mas não os voos charter e os hotéis de luxo”. No entanto, mesmo nesse mundo de portas que sempre se fecham, “às vezes você foi feliz. Não apenas apesar das coisas”. (Sontag: vida e obra)

Em A velhice, Beauvoir argumentou que nem todo envelhecimento é igualmente difícil, rangente ou amargo, porque “velhice” não se refere a uma única experiência universal. Assim como tornar-se mulher, envelhecer varia muito, dependendo do contexto físico, psicológico, econômico, histórico, social, cultural, geográfico e familiar do indivíduo em questão. A situação do envelhecimento afeta drasticamente sua experiência. (Simone de Beauvoir: uma vida) 


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