Jornal Estado de Minas

CRÔNICA

Por que ler 'A mulher e os espelhos', clássico centenário de João do Rio

No lendário País do Sol, como é chamado (apesar de às vezes chover semanas inteiras), eu presenciava um discurso sobre João do Rio, pseudônimo do jornalista e escritor João Paulo Alberto Coelho Barreto (1881-1921). O tema principal era A mulher e os espelhos, livro lançado em 1919. Encarregado de resenhar essa obra, eu esperava me inspirar em ideias alheias ou copiá-las deslavadamente caso nenhuma brotasse em minha cabeça – perdoem a franqueza.

A pessoa que discursava – a miopia me impedia distinguir seus traços – confirmava o modo como os escritos de João do Rio são apreciados por Antonio Candido (1918-2017) no ensaio Radicais de ocasião, publicado em 1978. Candido afirma que João do Rio, ainda que fosse um dândi “procurando usar a literatura para ter prestígio junto às camadas dominantes” nas primeiras décadas do século 20, revelou-se, ocasionalmente, “um inesperado observador da miséria, podendo, a seus momentos, denunciar a sociedade” com “senso de justiça” e “coragem lúcida”.

Essa opinião foi lida naquele discurso que eu ouvia. Após a citação, enxerguei o próprio Candido sentado a poucas cadeiras de distância. Tive um susto, mas me lembrei de estarmos num país imaginário. O semblante do crítico expunha – essa foi minha impressão – um tédio discreto e bondoso.

Antes de a conferência terminar, Candido dirigiu-se à porta de saída. Levantei-me, fui atrás.
Chovia naquela tarde, os grossos cordões d’água davam à rua um aspecto de rio agitado. Candido correu até uma fila de táxis estacionados. “Professor! Professor!”, gritei, mas ele se ia num dos carros.

Moral e instinto

A chuva diminuiu. Saí a andar, alheado, melancólico. Um festival de besteiras assola o país, mas o que me pesava era não conseguir resumir A mulher e os espelhos de acordo com o esquema de Candido. A coletânea é composta de textos que a crítica costuma classificar como contos. Aqui os chamemos de crônicas, já que contêm elementos importantes da tradição cronística brasileira: por exemplo, o registro do circunstancial, do cotidiano, e o interesse pela construção oral-dialógica.
Pode ser que os textos tendam ora para um gênero, ora para o outro...

Funcionando como prefácio, o primeiro texto, Carta-oferta, constata que tomamos o homem como modelo da humanidade e a mulher como a exceção, o inapreensível. Expõe-se, aparentemente, uma acelerada síntese de como os dois sexos seriam definidos na, digamos, “cultura ocidental”. Segundo a Carta-oferta, a polarização é reproduzida pela própria mulher: esta se julga uma obscuridade e busca o homem que a revele. Por sua vez, o homem encarnaria um espelho egoísta, vendo-refletindo só o que deseja.


O melhor seria que a mulher não confiasse em espelho algum, pois “distantes estamos da realidade entregando a nossa alma aos reflexos com a ilusão de que eles nos compreendem” (essa e as demais citações foram extraídas da primeira edição, acessada no site da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP). O livro recomenda, assim, uma emancipação que soa vaga e tímida, especialmente diante da extensão assumida nos últimos 100 anos pela luta em prol dos direitos das mulheres.

O prefácio informa, por fim, que as 18 narrativas seguintes “contam o eterno drama da Mulher diante dos espelhos”. Viremos as páginas e notemos o que críticos apontam no autor desde seu primeiro livro (As religiões do Rio, de 1904): uma atração pelo estranho, raro, aberrante, imprevisto. Em A menina amarela, por exemplo, o personagem Pedro anseia pelo “lugubremente horrível que há sempre a pairar nos transbordamentos banais da luxúria”.

Na avidez de Pedro, o horrível e o banal se associam. Alguns elementos em A mulher e os espelhos sugerem que algo aparentemente extraordinário, ao ser examinado em suas conexões ético-políticas, pode manifestar a uniformidade.
Também é certo que, entre o banal e o singular, definidos sempre em relação a um contexto, pode haver passagens, misturas, confusões. A produção cronística, inclusive a de João do Rio, habituou-se a suspeitar dessas prévias categorizações.

Não fosse a chuva, nossa caminhada desaceleraria para matizar os desencontros expostos na antologia. Um quadro quiçá auspicioso surge na crônica derradeira, Penélope. Um dia, Alda, recém-viúva, abastada, apaixona-se por um vendedor pobre. Eis o dilema: como ela poderia unir-se a alguém “que não existia socialmente, não tinha um nome, um título”?.

Em meio a essas banalidades, insinua-se uma exceção ao malogro usual. Alda sente o desejo irromper, impoluto, de uma nascente virgem. A água vai sulcando e salientando a intimidade da viúva. Manuel, 18 anos, também exibe virgindade, ao menos ao ser percebido por Alda, cujo pensamento é “traduzido” em discurso indireto livre.

O caixeiro e a viúva combinam uma sensualidade ingênua, “instintiva”, e traços de uma moral conservadora. A fusão entre “cultura” e “natureza” evitaria tanto um moralismo fingido, reinante na elite carioca, quanto uma amoralidade “selvagem”, o despudor dos antros de “má vida”. Talvez esteja nesse suposto equilíbrio uma utopia de João do Rio para a civilização brasileira.

Após hesitar, Manuel come do fruto oferecido pela mulher, Penélope fiel por antecipação e condutora de um retorno ao afeto “primitivo”.
Afinal, o casal vai embora do Brasil. Possível ironia: a dupla leva uma criada de Alda chamada Leônia, mesmo nome assumido, no texto “O veneno da literatura”, pela autora de cartas apaixonadamente fantasiosas.

Crítica de costumes

A chuva parou. O crepúsculo prenunciava uma noite clara, onde as estrelas teriam palpitações de amor. Porém, no momento indeciso em que a luz fugia do céu, parecia que tudo se envolvia de imponderável tristeza... “Como tudo isso é banal, romanesco e triste!” Voltei o rosto, vi que caminhava a meu lado o elegante barão André de Belfort, o mesmíssimo que aparece em A mulher e os espelhos e em outros livros de João do Rio. (Talvez não o mesmo, depois de século tão atribulado.) Contei logo ao barão meu incômodo com o esquema proposto por Antonio Candido.

Candido avalia, como dissemos, que João do Rio usa a literatura “para ter prestígio junto às camadas dominantes”. Essas, porém, com seus modelos e hipocrisias, são repetidamente criticadas em A mulher e os espelhos. Seja como for, a antologia não se encaixa em nenhuma das fases nas quais o ensaio Radicais de ocasião divide os livros de João do Rio. Aspectos atribuídos à segunda fase, o “esnobismo decadente” e o “franco cinismo” são atitudes de narradores e personagens da coletânea, mas esta as observa com alguma distância, às vezes irônica.

Em A mulher e os espelhos imprimem-se opiniões inaceitavelmente imbecis. Por exemplo, um personagem, após narrar uma tentativa de feminicídio, vitimiza o agressor: a mulher atacada “não o deixará enquanto for possível fazer-lhe mal”.
Intolerável e, lamentavelmente, banal, como alertou a Carta-oferta.

Acreditas tu, barão Belfort, que Antonio Candido antecipa o Juízo Final? Os momentos em que teu criador expõe, revoltado, a exploração capitalista “haverão de ser computados como a sua hora e vez”, diz o ensaísta. No cânone da crônica, é comum que se declare um propósito documental e até de denúncia. Porém, os escritos também imaginam o mundo, o que este é e poderia ser, sem apenas captar algo prévio.

O barão, um sorriso inexprimível, quiçá fatigado da minha tagarelice, ressaltou que A mulher e os espelhos contém passagens que riem e se aborrecem ao mesmo tempo. Depois, apontou em oito textos uma mesma composição, existente em outros livros de João do Rio. Pessoas conversam; a introdução estabelece os interlocutores e circunstâncias; um participante trama uma retrospecção, narração menor que recorda um “caso” entre um homem e uma mulher; a conclusão retorna ao tempo presente.

“Apenas em Uma criatura, a quem nunca faltou nada a narração menor tem três protagonistas”, emendou Belfort, que acrescentou outra exceção: em Exaltação, a conversa principal inclui uma mulher, “autora” da retrospecção. De qualquer modo, a tripartição sugere um mundo que gira em torno desses “dramas” e os acolhe, em gozo agoniado.

O barão silenciou, mirou as unhas brunidas, mirou a gravata. Prosseguiu dizendo que o esquema descrito acima não está longe do que se encena em outro texto, Puro amor: um diálogo de circunstâncias misteriosas, convertido no monólogo de um autoidentificado “simples caixeiro”, que imerge na retrospecção de um “flerte” com uma mulher e regressa ao presente.

Belfort acendeu uma cigarrilha com o seu monograma em ouro. E os nove textos restantes? Esses – respondeu, lacônico – apresentam diferenças que não cabem naquela tripartição. Soprou a fumaça da cigarrilha e um trecho da coletânea: “A literatura depois de Homero, Ésquilo e Aristófanes não passa de uma grande pelintrice. Tudo cópias, tudo decalques”. Despediu-se e, suponho, foi jantar tranquilamente na sua mesa, não sei se florida como outrora.

* Tiago de Holanda é doutorando do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos literários, da Universidade Federal de Minas Gerais
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