Jornal Estado de Minas

Maria José de Queiroz prepara lançamento do romance 'Terra incógnita'





Dos autos da devassa, uma única frase no terceiro de 11 volumes ilumina um colosso de palavras arquitetadas para arrastar o libertário à forca. Embaralhada em meio ao mais extenso processo jurídico do período colonial, lá está a nova sentença: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, era solteiro e tinha uma filha natural. Quase dois séculos se passaram, até que Joaquina, essa obscura criança bastarda da Inconfidência, engolida pela dramática história de um povo em busca da liberdade e de um herói de ascendência amaldiçoada, ganhasse corpo e vulto. E assim se fez em 1987, ao ritmo da trama ficcional bordada por Maria José de Queiroz, sob o título de Joaquina, filha do Tiradentes. Foi este o romance histórico de uma extensa obra desta belo-horizontina, residente em Paris, considerada uma das maiores escritoras vivas da língua portuguesa. Até então, Maria José de Queiroz dedicava-se a  ensaios acadêmicos, tidos como extraordinários pela pesquisa envolvida e qualidade dos textos.



Mais de três décadas depois, Joaquina – que nas palavras de Carlos Drummond de Andrade a história “nem se lembrou de esquecer” –, foi desperta por Maria José de Queiroz para o mundo. Aos 84 anos, a escritora, doutora em letras e catedrática da Universidade Federal de Minas Gerais, que já foi professora visitante das universidades de Harvard e Berkeley (EUA) e mantém vínculo, entre outras, com Paris – Sorbonne, na França, prepara-se para a nova edição do ensaio A literatura encarcerada (1981), pela editora Caravana Grupo Editorial. Pela mesma editora, ela lançará em novembro mais um romance, Terra incógnita, que se soma à extensa obra, de mais de 30 títulos, incluindo ensaios, poesias, romances e contos.

Membro da Academia Mineira de Letras (AML) – sucedeu a Affonso Penna Júnior na cadeira 40, cujo patrono é o visconde de Caeté –, Maria José será homenageada pela academia em 20 de novembro, ao completar 50 anos de cátedra. “Num país em que a cultura é um desafio e um defeito, os estudos fundamentais dela sobre escritos do cárcere, do exílio, da literatura, dos indígenas, da pobreza e de tantos outros temas, aliados a uma profunda reflexão sobre a mulher, sobre o papel da mulher intelectual e escritora no Brasil, são ainda pouco estudados”, avalia Lyslei Nascimento, professora de teoria da literatura e literatura comparada da Faculdade de Letras da UFMG, pesquisadora e referência sobre a obra de Maria José de Queiroz.
 


Um profundo e rigoroso trabalho de pesquisa, descrito por Pedro Nava como “catar, separar, escolher”, são qualidades de estilo da ficcionista mineira. “É artesanal, que passa por um empreendimento pautado pela erudição e pelo requinte da elaboração pormenorizada de cenários e cenas da vida mineira”, afirma Lyslei Nascimento.




Escolhida pelos temas

A liberdade, valor que integra os direitos fundamentais do homem, perpassa e funda o argumento na obra de Maria José de Queiroz. E com ela Minas Gerais, sua história, sua cultura, os ideais libertários, que dão voz a Joaquina, filha daquele que foi apelidado de “Liberdade”, mas está também presente em A literatura encarcerada (1981), A literatura alucinada (1990), A literatura e o gozo impuro da comida (1994), Os males da ausência ou A literatura do exílio (1998) e Em nome da pobreza (2006). Para além de Joaquina, a temática da liberdade também atravessa toda a obra ficcional, como Sobre os rios que vão (1991) e Vladslav Ostrov, príncipe do Juruena (1999).

É assim que Maria José de Queiroz, que gosta de afirmar que não escolhe os temas de sua obra, mas, antes, é por eles escolhida, demonstra que na composição de cada palavra a literatura se desenha, a música e o ritmo se integram, e a palavra a liberta. “Através da palavra você chega à liberdade. Temos o direito de falar. O fundamental na existência é a presença da palavra”, avalia a autora, que encontra na fusão entre o ser e a sua linguagem a essência da vida. “Você e a sua língua são um único, a língua é a própria alma. É o que nos dá vida, nos traz para o outro. Você fala que gosta de sua mãe, ou de um prato, a sua língua é o seu corpo pedindo socorro em qualquer circunstância que esteja, quando você tem fome, quando tem solidão, em todos os momentos, a sua língua está ali”, sustenta Maria José de Queiroz.

Para esta intelectual, que se emociona ao refletir sobre o exílio, o encarceramento e a privação da liberdade, o grito da palavra que se materializa em temáticas universais,  articuladas num mosaico que bem constituem uma enciclopédia cultural dos países de língua portuguesa e espanhola da América. Ao percorrer todas essas paisagens, é a Minas que Maria José de Queiroz sempre retorna. É assim que, em 1971, em Paris, discorreu em Como me contaram: 

“(...) Mas no fim de cada estrada
Minas me espera, de alcateia.


Na esquina de mim mesma entre calle street strasse e boulevard,
no agudo da incerteza,
da angústia, do desassossego,
Minas me diz: presente!
Olhos fechados, livre de todo medo,
os músculos me ensinam montanha, ferro e aço:
regresso às minhas veredas.
No sertão alucinado a paz se restabelece.
Minas existe.Vivo de sua herança: ilesa.”

É uma literatura que desafia. “Pela densidade da história que está sendo contada, pelo tecido de vozes que constroem o texto, vários escritores em vários tempos sendo trançados, pela profunda pesquisa – ela demora oito, 10 anos para lançar um livro. Por tudo isso, é uma autora que exige coragem”, comenta a professora Lyslei Nascimento. “É a maior escritora brasileira viva. Com a vantagem de que é tão ensaísta quanto ficcionista, uma poeta. Tudo o que faz é com perfeição. Agora não é uma escrita que se lê e traz conforto. Ao contrário, é uma escrita que desperta para as coisas, para o mundo. É uma escritora que incomoda”, resume Lyslei Nascimento. E assim como Carlos Drummond de Andrade, é uma literatura para fazer dormir as crianças e acordar os homens. Das montanhas e para além delas.


ENTREVISTA/MARIA JOSÉ DE QUEIROZ ESCRITORA E ENSAISTA

“A língua é a própria alma”


Como a senhora escolhe as suas temáticas?
Não escolho. Elas que me escolhem. Eu, às vezes, estou escrevendo e me vem aquela ideia de escrever alguma coisa sobre isso ou aquilo e se transforma posteriormente num livro. Agora, há assuntos que estão dentro de mim. As coisas que tenho raiva, como as prisões, estudei os prisioneiros políticos.



Como foi a inspiração para escrever Joaquina?
A Joaquina é diferente por causa do nosso herói. Não há, nem nunca houve um herói como Joaquim José da Silva Xavier. A filha dele entrou na minha vida por causa da mãe dela, que quis ter um filho que fosse de um herói. Dizem que a avó de Joaquina dizia: “Que absurdo você com essa criatura? Pensar que vai haver liberdade, não há possibilidade, o país é dos portugueses, somos colonizados”. Ela achava as ideias de Tiradentes absurdas. O tema me escolheu porque não há nada mais fundamental em nossa existência do que a liberdade.

Entre os ensaios que a senhora escreveu, um deles vai ser relançado, Literatura encarcerada. A literatura liberta? 
A literatura de dentro da prisão é a literatura da liberdade. Através da palavra você chega à liberdade. Você pode falar o que você quiser. Temos o direito de falar. O direito de reclamar e o direito de protestar. O fundamental na existência é a presença da palavra. E é com a palavra que se mobiliza para a ação, que vou conquistar o mundo. Libertas quae sera tamen. Liberdade ainda que tardia. Através da palavra, nós, em Minas, começamos. E veja a beleza da Inconfidência Mineira. A conjura é articulada também por aqueles intelectuais que foram estudar em Lisboa. Isso é ainda mais bonito. Eles se revoltam com aquele país que lhes deu a possibilidade de estudar e lutar por nossa liberdade. Foi em Portugal onde aprenderam a ler e a escrever. Isso dá aos portugueses também a honra de ter tido um povo como o brasileiro, que recebeu essa língua que não é língua de ninguém mais nesta grande América. E podemos dar ao mundo esse exemplo de que também se faz boa literatura e poesia nessa língua que poucos países sabem falar.

De toda a sua obra, qual lhe deu mais prazer de escrever? 
Foi a Literatura do exílio ou os Males da ausência. Foi um grande ensaio de 715 páginas. Foi uma pesquisa que tinha começado nos EUA, depois prosseguiu na França, na Alemanha. Foi a primeira, a mais importante, e foi o tempo em que eu mais sofri. A minha própria mãe vinha e me via no escritório chorando. Você se afastar de sua terra, de seus entes queridos. Ser exilado é terrível. Exilado você perde o sentido de sua localização no mundo. Você não sabe mais em que situação se encontra, que língua você ouve. Foi o livro que mais me marcou por aquilo que sofri em fazê-lo. A mais terrível das solidões é a do exílio, da pátria. Monteiro Lobato sofreu isso. Quando exilado na Argentina, ele estava tão infeliz, que um dia ouviu um casal falando português. Saiu correndo atrás dele, pois a saudade da língua portuguesa era grande. Como existe entre você e a sua língua uma amizade grande com a própria língua. Tanto que você vai gostar de algumas palavras mais do que outras. Eu mesma às vezes converso com elas e digo: ‘Sai pra lá palavra, você é muito antipática’. Mas você e a sua língua são um único, a língua é a própria alma. É o que nos dá vida, nos traz para o outro. Você fala que gosta de sua mãe, ou de um prato. A sua língua é o seu corpo pedindo socorro em qualquer circunstância que esteja, quando você tem fome, quando tem solidão, em todos os momentos, a sua língua está ali. A coisa só existe a partir do momento em que há a palavra. Sem ela, não existe. O mundo é feito de palavras. A palavra é ação, é vivência, é a vida interior, é gostar mais de música do que de literatura, ou gostar de ambas, pois literatura sem música não é literatura. A língua deve ser ritmo, daí a beleza da língua. Cada um de nós tem um ritmo de fala. Você reconhece a fala do outro por causa do ritmo. Somos seres que temos um ritmo para nossa própria vida, uma forma de andar na rua.



Literatura e música são faces da mesma moeda?
Essa moeda se chama arte. A arte se envereda pela arte da palavra, que tem de ter um ritmo, tem de ter música, senão fica horrível.

Que tipo de pesquisa exige a sua obra?
É preciso que você pegue e veja a bibliografia para entender o que precisa ler para enfrentar um livro como aquele. Sempre li muito. O ensaio sobre a literatura no exílio foram oito anos. Estive no maior arquivo do exílio do mundo, a biblioteca da Alemanha.


Ano novo, vida nova (1971)

Embora escrito em português, o romance em primeira pessoa é quase bilíngue. A personagem-narradora Patrícia, uma mineira envolvida num caso amoroso com um francês casado, reflete sobre a possibilidade de escrever a sua história de amor. O duplo registro, ora em português, ora em francês, confere ao texto um caráter de charada, de enigma, de metalinguagem. A história, ricamente composta pelos cenários das cidades europeias, especialmente Paris, traz outros detalhes importantes recriados com requinte, como a referência à culinária e à literatura.




Homem de sete partidas (1980)

A narrativa é construída em roteiros para as terras sul-americanas. Bernardo é um personagem que busca o tio desaparecido para lhe desvendar a vida e conhecer-lhe as aventuras. A partir desse pretexto, a escritora navega sobre os campos da América Latina em mapa riscado para conduzir o narrador e leitor a uma viagem por entre as andanças de um andarilho.


Joaquina, filha do Tiradentes (1987)

Por meio da narrativa da filha de Tiradentes – até então ignorada pela história – Maria José de     Queiroz reconstrói em Joaquina, filha do Tiradentes a vida colonial cotidiana do século 18. A Inconfidência Mineira é o contexto em que ficção e história se articulam e revelam o melancólico destino da herdeira do “sal e da infâmia”, do       condenado de Vila Rica. Esse romance histórico constitui um percurso consciente e intelectualmente elaborado pela romancista, em trama que privilegia o passado de Minas.

Os males da ausência ou A literatura do exílio (1998)

A literatura do exílio é ensaio de 714 páginas, resultado de oito anos de pesquisa da autora, movida pelo desafio de recuperar o percurso de dores e sofrimentos da própria história do homem, em suas dramáticas e, pelas circunstâncias, inevitáveis escolhas. De Adão e Eva expulsos do paraíso é longo o itinerário de exílios e males da ausência, que percorrem com o desterro, o círculo do inferno, de dores e ausências.



O livro de minha mãe (2014)

Nesta obra, Maria José de Queiroz recupera a infância, a perda do pai, ainda criança, a fibra e a coragem da mulher forte que foi Honória, sua mãe. A poesia, a música, as histórias de Minas – eis o elo que une mãe e filha, em simbiose. Inscrita na longa tradição de escritores que, no luto, tentam explicar a grande falta que é a morte da mãe, a autora ecoa os fragmentos de Diário do luto, de Roland Barthes, em que o escritor trata de “uma dor absurda, impossível de contornar”. De forma mais expressiva, entoa, em dueto com Alberto Cohen, autor de Le livre de ma mère, “uma noite com palavras”, a celebração da mãe, de todas as mães.