Jornal Estado de Minas

Que imperador é esse?

- Foto: Não sei se o espírito de Adriano me persegue ou se não deixo o imperador romano em paz. O certo mesmo é que, pretensão à parte, desde a primeira leitura – isso mesmo, já foram três, em diferentes fases da vida – do espetacular livro de Marguerite Yourcenar (1903-1987), tenho a obra como “de cabeceira”. Começou assim, no início da década de 1980: estava eu numa viagem de barco pelo Rio Amazonas, entre Belém e Manaus, quando, diante da imensidão da floresta e das profundezas do rio, mergulhei nas páginas da obra recém-lançada no Brasil (na França, em 1951). Memórias de Adriano se tornou um amigo do peito. Meu livro passou de mão em mão; às vezes, inesperadamente, alguém me dizia: “Olha, está comigo, viu?”, até que desapareceu sem deixar vestígios. Em muitos momentos, pensei por onde ele andaria, mas nem imagino: quem sabe um dia volte; afinal, há pouco tempo, alguém me devolveu outra preciosidade de autoria de Yourcenar, Alexis ou o Tratado do vão combate, 16 anos depois de tê-lo emprestado.

O tempo passou e comprei outro exemplar numa dessas coleções de “grandes obras da literatura”, vendida em banca de jornal. Foi aí que reli, sublinhando as partes que julgava importantes, sempre viajando nas emoções e me emocionando com a grande viagem que é ler um bom livro. De forma especial, fico sempre um bom tempo diante da frase de abertura da primeira parte da obra, Animula vagula blandula, em latim, traduzida para Pequena alma terna flutuante.
Sempre considerei essas quatro palavras uma poesia completa, e, divagando, até hoje procuro um sentido para tanta beleza. Agora, foi lançada nova edição de Memórias de Adriano, pela Nova Fronteira (Coleção Clássicos de Ouro, com capa dura), tradução de Martha Calderaro e prefácio inédito da historiadora Mary del Priore. Confesso que já comprei e vou guardá-lo para, talvez, a última leitura lá pelo fim da vida.

O mais importante, devo admitir, não é propriamente a “autobiografia imaginária” composta com sensibilidade superlativa pela escritora nascida em Bruxelas, na Bélgica. Eu me apaixonei pela escrita, o jeito elegante e muito próprio de contar a trajetória do imperador Adriano (76-138 d.C), as observações sobre o mundo e o tempo, passagens, muitas vezes, misturando criadora e criatura num único ser humano. O livro me abriu as portas para outras obras da autora, as quais devorei com um apetite feroz. Ou leve, dependendo do momento: A obra em negro, com a figura extraordinária de Zênon, Golpe de misericórdia, Como a água que corre, Mishima ou a visão do vazio e outras compostas como sinfonia.
 
Vale lembrar que a criação de Memórias de Adriano somou pesquisa, paixão, rompimento, solidão, nervos à flor da pele, ficção e sensibilidade profunda para falar de política, viagens, poder, amores, ambições, enfim, vidas pública e privada. Marguerite Yourcenar começou a escrever sua obra-prima entre 1924 e 1929, ainda bem jovem, e, nas três décadas seguintes, foi do céu das descobertas ao inferno das incertezas, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, para terminar seu objetivo.
Essa corrida alucinada pela perfeição, em cada página, me deixou perplexo, conforme o Caderno de notas que acompanha a edição e deve ser lido atentamente – na verdade, é como se fosse um outro livro dentro desse volume, tal o relato em alguns momentos desesperado e cativante. Nessa fase, entendi o jeito do seu trabalho e nunca esqueci: escrever e desmanchar, escrever de novo, parar e prosseguir. “Todos os manuscritos foram destruídos e mereciam sê-lo”, pensou e agiu a autora em 1934. Mais ou menos como quem apaga as pegadas ou, no caso de uma bordadeira, que desmancha o ponto, deixa o tecido repousar e reinicia puxando de novo a linha.



AMOR EM MÁRMORE

Mas vamos à experiência pessoal. Em 1982, em visita ao Museu do Louvre, na França, e andando meio sem destino por aqueles espaços gigantescos e espetaculares, me deparei com a escultura em mármore de Antínoo, o amor da maturidade de Adriano. Fiquei meio estupefato, pois não estava procurando nada relacionado à obra. Muitos e muitos anos depois, em Roma, acompanhei atentamente o guia falando sobre Adriano e seus feitos, mas, devido ao pouco tempo, não cheguei à Villa Adriana, residência de veraneio do imperador localizada a 30 quilômetros da capital italiana. Marguerite Yourcenar esteve lá várias vezes, conforme seu relato, assim como em outros onde seu biografado viveu.

No Museu do Vaticano, a maior surpresa.
Esculpidos em mármore, na galeria de arte greco-romana, estavam Adriano e Antínoo, lado a lado, entremeados por um vaso de flores. De volta ao hotel, caminhando pela Corso Vittorio Emanuele II, a larga avenida, entrei numa loja e estive para comprar uma estatueta do imperador – não levei e até hoje me arrependo. Em Atenas, fiz questão de cumprir o caminho do homem nascido Publio Élio Adriano (em latim Publius Aelius Hadrianus), da dinastia dos Antoninos. Atenas era o lugar preferido, a cultura helênica, uma devoção. “O pano de fundo de Adriano não é o deserto, são as colinas de Atenas”, escreveu a autora. Na volta da viagem à Grécia, li o livro pela terceira vez.

Em julho deste ano, em viagem a Jerusalém, visitei um museu e lá estava o busto em bronze de Adriano. Nada demais, afinal a Palestina foi uma província do império que não dava trégua a judeus e cristãos. Entusiasmado, enlacei a peça (o que jamais deveria ter feito) e brinquei com um recém-amigo turista: “Faz, por favor, uma foto minha com o imperador Adriano”. E não é que quase caí no chão com a escultura e tudo? Foi aí que ouvi: “Também, enaltecer imperador romano nas terras de Jesus dá é nisso, né?” .Pausa. Na Cidade Velha, admirei as colunas do tempo de Adriano, construções genuínas que resistiram ao tempo e a tantas transformações ao longo de quase 20 séculos.



HOMENS  LIVRES

Na semana passada, zapeando na tevê, parei no canal italiano RAI e assisti, sem falar a língua, a um programa de disputa literária entre jovens estudantes.
No centro das atenções, o livro de que tanto gosto. Fiz um esforço danado e entendi algumas perguntas e respostas, satisfeita com a sapiência da garotada. Mais curioso ainda foi ver, na sequência, um grupo de adultos versados na história do imperador e na trajetória descrita por Marguerite Yourcenar, a primeira mulher a entrar para a Academia Francesa, na qual a Academia Brasileira de Letras se espelhou. “Era um imperador, mas com todas as contradições da existência humana”, resumiu uma mulher.

Logo depois, voltei ao Caderno de notas de Memórias de Adriano, com os bastidores da criação. E li mais uma vez: “Se esse homem não tivesse mantido a paz do mundo e renovado a economia do império, suas felicidades e seus infortúnios interessar-me-iam menos'” (…) “Bem depressa compreendi que escrevia a vida de um grande homem. Desse momento em diante, impôs-se maior respeito pela verdade, maior atenção e, de minha parte, maior silêncio”. E há uma frase que soa como premonição. E merece reflexão. “O século 2 interessa-me porque foi, durante muito tempo, o século dos últimos homens livres. Pelo que nos diz respeito, já estamos talvez muito distantes desse tempo”.

Trecho do livro

“Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos indispensável do que aqueles, visto que ele podem perfeitamente prescindir dela.
Do moralista, tudo se espera, mas espanto-me que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esforçando-se por aviltar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terrível sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos. Acreditaria nessa associação do amor às alegrias puramente físicas (supondo-se que tais alegrias existam) no dia em que visse um gastrônomo soluçar de prazer diante do seu prato favorito, tal como o amante sobre um ombro amado. De todos os jogos, o amor é o único capaz de transtornar a alma e, ao mesmo tempo, o único no qual o jogador abandona-se necessariamente ao delírio do corpo. Não é indispensável que aquele que bebe abdique da razão, mas o amante que conserva a sua não obedece inteiramente ao deus do amor.”

Quem foi Adriano

No Museu Britânico, em Londres, encontra-se o busto do homem esculpido em mármore que provocou impacto na jovem Marguerite Yourcenar e foi o começo de sua clássica obra. Ao lado está Antínoo. Terceiro imperador romano, da dinastia dos Antoninos, Adriano governou entre 117 e 138 d.C., marcando o apogeu do Império Romano. Nascido na região onde hoje é a Espanha, em 24 de janeiro de 76, é descrito pelos especialistas como letrado, amante das artes e do direito. Adotado por seu tio e imperador Trajano e indicado como seu sucessor, Adriano assumiu o posto abandonando a política de conquistas do seu antecessor e optando pelas alianças, o que contribuiu para amenizar os riscos de revoltas. Dotado de espírito aventureiro e cosmopolita, decidido a garantir a presença romana em todo o império, Adriano passou grande parte de seu governo viajando pelas províncias romanas, cuidando da reorganização administrativa e da defesa das fronteiras do império. Merece destaque, especialmente para os viajantes, a Muralha de Adriano, com mais de 100 quilômetros. Para enfrentar a ameaça dos chamados povos bárbaros, ele ordenou a construção, entre 122 e 128, de muralhas e fortalezas no atual Reino Unido. A megaestrutura protegia as terras conquistadas e demarcava o limite ocidental dos domínios do Império.


- Foto: Memórias de Adriano

• De Marguerite Yourcenar
• Editora Nova Fronteira – 24ª edição
• 296 páginas
• R$ 55,90
• R$ 39,99 (e-book)
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