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Que saber é esse?

Poesia não é questão de verso, pressupõe trabalho, racionalização, construção e, principalmente, um saber. É o que mostra Amador Ribeiro Neto em Poemail, em linguagem experimental e consonante com o concretismo


postado em 24/05/2019 04:09

Novo livro do paulista Amador Ribeiro Neto, radicado em João Pessoa, apresenta coletânea de poemas, em que apresenta a possibilidade de saber de si e do outro:
Novo livro do paulista Amador Ribeiro Neto, radicado em João Pessoa, apresenta coletânea de poemas, em que apresenta a possibilidade de saber de si e do outro: "Livros nos devolvem quem somos%" (foto: Câmara Municipal de João Pessoa (pb)/DIVULGAÇÃO)




Meu jovem filho

“Quisera eu cosê-la / (a natureza) / a navalhadas /
e punhaladas / foices / e facadas / enxadadas / e machadadas /
sová-la / e sová-la / até devolver/ -me / intacta em sua alegria /
de mil sóis / a vida / de meu / jovem / filho”







Quando publicou seu primeiro livro de poemas em 2003, Barrocidade, Amador Ribeiro Neto, paulista de Caconde radicado em João Pessoa desde 1991, já era conhecido e admirado como um dos mais importantes pesquisadores da obra de Caetano Veloso e sensível crítico de poesia. Os poemas que publicou na antologia Na virada do século, organizada por Cláudio Daniel e Frederico Barbosa para a Landy, em 2002, constituíram uma “avant première” para uma poesia desejosa – não saudosa – de “avant garde”, de se concretizar como objeto dinâmico, movimento vivo. O segundo título publicado pelo autor depois de longos 12 anos, já em 2015, o “futurista” (ressoando Álvaro de Campos) Ahô-ô-ô-oxe, foi uma espécie de “tuitaço” artesanal, publicação aparecida em Florianópolis pelo selo Cartonera, anunciando o seu novo livro: Poemail, uma coletânea de poemas que agora sai pela Patuá.

A experimentação de linguagem, desarticulações e rearticulações do código verbal, é o traço que primeiro salta à vista numa poesia que se coloca abertamente no horizonte do concretismo e de outros tantos “ismos” do passado. Elucidar essa relação, num exercício de crítica intertextual, é importante, sem dúvida, num momento em que questões externas, sobretudo a questão de gênero e da mediação, sobrepõem-se muitas vezes de modo grotesco a questões internas, que dizem respeito à mecânica mesma da poesia. Todavia, o reconhecimento da relevância do gesto de Amador depende da qualificação dessa relação, da explicitação dos seus índices de autenticidade, de tal modo que possamos perceber um “intercessor” (Deleuze) dos “ismos”, que acrescenta dados ao repertório já convertido em tradição literária, não um mero emulador desses “ismos”.

Em consonância com o concretismo, a poesia não é, para o poeta de Poemail, uma questão de verso, mas uma questão de fazer, que pressupõe trabalho, racionalização, construção e, antes de mais nada, um saber. Que saber é esse? Este é o ponto fulcral, eu diria, que é preciso tensionar, tentar elucidar, sabendo, de antemão, que não é tarefa fácil, sobretudo em razão do fato de que estamos diante de um poeta “savant”, não de um criador de poemas espontâneo, movido pela famigerada inspiração. Toda a primeira parte de Poemail, denominada “Elos”, decantando poetas, críticos e prosadores, atesta não apenas uma rede de relações intertextuais – dado previsível –, mas um “modus operandi” do saber letrado, cuja particularidade consiste num dobrar-se, num volver sobre si mesmo: “Livros nos devolvem quem somos /: o avesso / do / nada / de / novo / a / o avesso” (A morte e os livros).

Ao contrário de grande parte dos poetas ditos cultivados, que ainda hoje percebe a relação com a poesia a partir de um preceito beletrista herdado do século 19, Amador Ribeiro Neto encontra nos livros – de poesia, no sentido genérico de “poiesis”, de criação – uma possibilidade de saber de si – e, concomitantemente, saber do outro. Seu gesto poético, como já o demonstrava desde o turbulento Barrocidade, não é narcísico, autocomplacente, mesmo quando se empenha em falar do sentimento de pai diante da morte trágica de um filho. Vejamos já, para exemplificar este aspecto, o que se passa no belo “Meu jovem filho”, um dos momentos viscerais de Poemail: “Quisera eu cosê-la / (a natureza) / a navalhadas / e punhaladas / foices / e facadas / enxadadas / e machadadas / sová-la / e sová-la / até devolver/ -me / intacta em sua alegria / de mil sóis / a vida / de meu / jovem / filho”.

Esse poema, ao lado de outros em que o poeta atém-se a eventos dolorosos, como depressão e suicídio, figura na terceira e última parte de Poemail, denominada “Dentros”, precedida por “Sítios” e a já citada “Elos”. Saber de si, adentrar-se, dobrar-se, coloca o poeta numa situação de enfrentamento brutal da natureza, em que reluz uma verdade experienciada, com sabor de agonia, que tem sido sistematicamente evitada, quando não censurada, desde os anos 1990 na poesia brasileira em nome (quem sabe?) de uma saúde institucional, acadêmica, do campo literário. O movimento – corajoso – que “Meu jovem filho” realiza é compreensível à luz do que Foucault explora n’A hermenêutica do sujeito: a perspectiva socrática do conhecer a si mesmo consiste num despertar da interioridade como esfera incômoda, cuja imagem é a de um animal acometido por um tavão, o inseto que produz uma coceira terrível, um mal-estar no corpo.

RESISTÊNCIA AO
ESTADO OPRESSOR


Nascido em 1953, Amador Ribeiro Neto tinha 11 anos em 1964, quando os militares tomaram cinicamente – tal como tem acontecido no país de 2016 para cá – o poder, investindo na demonização da democracia e instaurando, a partir de 1968, um “estado de exceção”, com a negação de direitos fundamentais, a começar pela liberdade de expressão. Tendo vivenciado as agruras daquele cenário, Amador pertence à geração que teve no incômodo, na insubordinação, no “desbunde”, como se dizia nos anos 1960 e 1970 ao ritmo da contracultura, uma questão de honra, um índice de resistência ao Estado repressor. O fato de sua poesia ter começado a aparecer em livro somente em 2003 não pode constituir estímulo para leituras agorais, presentistas, convenientes, pautadas apenas em valores teórico-críticos considerados atuais. Evidente que, como Murilo Mendes se via, o poeta de Caconde não é seu próprio sobrevivente, mas seu próprio contemporâneo – com toda a complexidade que este conceito implica, todavia.

Ainda à luz do modo inquietante como Foucault repensa a subjetividade, é possível dizer que o tavão de Amador – e de todos os marginais, alternativos, vanguardistas da sua geração – é a ditadura militar, o “Estado de exceção”, que provoca ânsias rimbaudianas de desregramento de sentido, ataques de “beat generation”. Poemail nos permite perceber uma espécie de passo a passo desse processo no âmbito específico de uma poética: os “elos” autorais, os “sítios” habitados, os “dentros” acessados. O que conta nesse processo, segundo essa ordenação, é, em primeiro lugar, o nível discursivo, a representação, a “realidade de signos”, para lembrar Haroldo de Campos, uma das referências estruturantes do poeta em Amador, ao lado de Caetano Veloso e, como Poemail o revela agora, João Cabral. Em segundo lugar, contam nesse processo duas geografias – a paulista e a paraibana. E, em terceiro lugar, conta a vida vivida, a experiência nua e crua de existir, afeto familiar, doença, morte – e a alegria!

De fato, é a alegria que, como assinala o poeta Ronald Polito no prefácio a Poemail, desponta como fatura geral, ponto luminoso da geleia, nesse livro que é tão século 21, afim da internet, hipertextual, rizomático, quanto modernista, generoso com as brasilidades, as feiras, as malícias, os altos e baixos, as contradições cotidianas de um país transbarroco. A “alegria é a prova dos nove”, como sentenciou Oswald, mas não só isso; é um torquatiano porto seguro, mas também não só isso; é uma caetânica auto-afirmação sobre os podres poderes circundantes, mas algo que também vai mais além disso. A alegria de Amador é uma alegoria, para lembrar Celso Favaretto lendo a Tropicália, do processo de desregramento de sentido como processo de barroquização, que pressupõe uma compreensão da matéria de poesia – temas, eventos, sensações, experiências, signos diversos – como algo modulável, dobrável, variável. Trata-se de uma alegria que resulta de um saber sobre si mesmo como objeto comunicante, espécie de “eumail”.

Toda a autenticidade desconcertante que atravessa Poemail se deve, sem dúvida, a uma perspectiva sobre a alegria, esse controverso capital nacional, muito próxima àquela concebida pelo poeta e psicanalista mineiro Hélio Pellegrino, um dos maiores poetas-sabedores do país, numa crônica que é uma obra-prima, hoje constante do seu A burrice do demônio, coletânea organizada pelo jornalista Humberto Werneck. “Toda alegria longa e autêntica – é severa”, diz Hélio, “o que não impede que a alegria seja leve e tenha gosto de vinho.” Essa crônica se chama “A construção da alegria”. Ainda no início desse belíssimo poema em prosa, diz o autor de alguns dos versos mais pungentes de sua geração, reunidos pelo mesmo Werneck no volume Minérios domados: “Constrói-se a própria alegria como quem constrói um barco: com ferramentas difíceis”.

Realmente, não são fáceis as ferramentas com as quais Amador Ribeiro Neto constrói o seu barco-alegria. Poemas como “Ensimesmado” (“cada dia / entendo / mais & mais / profundamente / o som / surdo / dos / suicidas”), “A cerca da dor” (“a dor / corrói o metal dos edifícios”) e “Invocação das dores” (“largar livros / leituras / escritas / todo / & / qualquer / texto / para que / adentrem / angústias / desgraças / flagelos”), todos pertencentes aos “Dentros” de Poemail, dão a precisa dimensão existencial dessas ferramentas, desvelando a razão da particularidade “ivre”, bêbada, por isso mesmo humana, frágil, sensível, do barco do poeta. O artifício vanguardista, atualizado em clave concretista ou barroquizante, articula-se, nessa poesia, de modo produtivo a uma substância sempre tensa, agitada, transbordante, que não aspira apenas à leitura fria, mas a um envolvimento corporal, dançante, cantante, com o leitor. O Poemail do poeta do barco-alegria grita, como o Cazuza de “Boas novas”: “Então, vamos pra vida!”.


* Anelito de Oliveira, ex-editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de O iludido (Páginas, ficção), Traços (Patuá, poemas) e A aurora das dobras (Inmensa, ensaio) entre outras obras.


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