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Uma casa, muitas vozes

Ao completar cinco anos, editora Relicário inaugura espaço em BH com dois dos 20 lançamentos que fará até o fim do ano e abre as portas para outras atividades culturais


postado em 26/04/2019 05:09

Maíra Nassif na sede da Relicário Edições, em casa no Bairro Floresta:
Maíra Nassif na sede da Relicário Edições, em casa no Bairro Floresta: "Um espaço físico e organizado para comportar tudo o que a editora produz e ter outras pessoas trabalhando comigo" (foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS)




Ao contrário de boa parte dos moradores de Belo Horizonte, a editora Maíra Nassif não enfrenta engarrafamentos para ir e voltar do trabalho. Dezenove degraus separam sua casa, no primeiro andar, e a sede da Relicário Edições, no térreo de uma espaçosa residência em rua próxima ao Colégio Batista, no Bairro Floresta. Há apenas uma cadeira atrás da mesa em um dos cômodos, convertido em escritório, mas ela não trabalha sozinha. Na estante ao lado, guardados em ordem de publicação, os 64 volumes lançados em cinco anos de existência da editora; no chão, caixas com dezenas de livros novinhos. Milhões de frases, variadas cores nas capas, à espera de leitores.

Maíra Nassif quer mais companhias: na estante, que comportará outros 20 lançamentos até o fim do ano, e no ambiente. Por isso, inaugura neste sábado “um espaço físico e organizado para comportar tudo o que a editora produz e ter outras pessoas trabalhando comigo”, com dois lançamentos: Georges Perec: a psicanálise nos jogos e traumas de uma criança de guerra, de Jacques Fux, e Eu nunca fui ao Brasil, do austríaco Ernst Jandl, com seleção e tradução de Myriam Ávila. A partir de amanhã, as portas do número 155 da Rua Machado estarão abertas para reuniões de clubes de leitura, oficinas, debates e outras atividades culturais. “O espaço existe e a gente quer partilhar”, diz Maíra.

Relicário, agora, também é Casa.

minha casa é o cão de rua
que não é meu, que apenas acontece
de estar ali

Como se fosse casa (uma correspondência), de Ana Martins Marques e Eduardo Jorge, é um dos lançamentos mais bem-sucedidos da Relicário. Fruto colhido da correspondência entre a poeta mineira e o poeta cearense no período que ela morou no apartamento dele no Edifício JK, foi lançado em 2017 e teve duas reimpressões (os lançamentos de literatura costumam ter edição inicial de mil exemplares). ‘‘Esse livro é impressionante: sai sempre e, com muita frequência, aparece uma menção no Instagram”, conta a editora, de 33 anos. Por esse e outros títulos, a poesia contemporânea faz a Relicário pulsar.

minha casa é meu passaporte
minha casa é minha língua
estrangeira
fronteiras que me
cruzaram

A história da Relicário, iniciada em 2013, cruzou fronteiras por meio da literatura. Sentada à mesa do espaço originalmente destinado a uma sala de jantar, Maíra manuseia um exemplar de A vida porca, do argentino Roberto Arlt (1900-1942). Mostra detalhes da edição, impressa em serigrafia. “A gente publicou com a tradução do título que Arlt queria, não com o que foi dado pelo editor na Argentina, El juguete rabioso, como foi traduzido (O brinquedo raivoso) pela Iluminuras no Brasil”, destaca. A editora demonstra orgulho pelo que fez com a obra do autor de Os sete loucos. E relembra outro momento decisivo da expansão do trabalho que faz.

Flip, 2017. Primeira vez da Relicário em Paraty com uma autora na programação oficial: a chilena Diamela Eltit, de Jamais o fogo nunca. A publicação do título foi sugerida a Maíra pela curadora daquela edição do festival literário, Josélia Aguiar. “Abraçamos o projeto, porque tinha tudo a ver com a nossa linha editorial, e foi excelente. Além de mostrar a editora para um público que não nos conhecia, deu uma dimensão dos nossos pares: você entende melhor onde você está”, acredita. A Relicário voltaria no ano seguinte à Flip com uma autora convidada, desta vez a brasileira Laura Erber, de A retornada, traduzido para o albanês. Mas qual é a “nossa linha editorial”? Títulos acadêmicos; estética e filosofia da arte, teoria e crítica literária, psicanálise. Na literatura, além da poesia contemporânea, a prosa ensaística latino-americana, com foco em nomes eclipsados pela consagração mundial de Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e outros gigantes. Para abrigá-los, ou melhor, para abrigá-las, foi criada a coleção Nos.otras, exclusiva para autoras latinas. Lá estão figuras renomadas, como a argentina Sylvia Molloy, de Viver entre línguas. “Por que falo de bilinguismo, do meu bilinguismo, a partir de um idioma só, e por que escolhi fazê-lo a partir do espanhol? Em que língua acorda o bilíngue? Em que língua sou?”, pergunta-se a crítica literária, radicada em Nova York. A linha da Relicário, portanto, ajuda a desenhar o continente no feminino.

A América. Viva, morta. Ou revivida.

não quero ir
nada mais
que até o fundo

Pouco antes de cometer suicídio, em 1972, a escritora argentina Alejandra Pizarnik escreveu um verso-epitáfio em lousa em seu apartamento em Buenos Aires. Seus poemas, mesmo celebrados por Octavio Paz, jamais haviam sido editados no Brasil. Até que surgiu o interesse da Relicário. “Foi um trabalho obstinado, quase dois anos de insistência”, lembra Maíra. Ela mostra o box, à venda apenas no site da editora, que reúne os livros Árvore de Diana e Os trabalhos e as noites. “Quis fazer uma edição especial para marcar a conquista de ter a maior poeta argentina do século 20”, conta, antes de revelar: “Quero publicar tudo da Pizarnik: outros livros de poesia, a prosa completa, os diários...”

tenho nascido tanto
e duplamente sofrido
na memória daqui e de lá

Guardadas em estojo, as memórias poéticas de Pizarnik agora cabem nas mãos de Maíra. O box não é o único destaque na Casa Relicário. As capas da editora, quase todas criações da designer Ana C. Bahia, têm identidade marcante. Emolduram ideias e emoções que também carregam, ao menos, uma semelhança. “São livros com os quais eu tenho afinidade intelectual e literária”, explica Maíra. Em outras palavras: ela não publica livros que não tem vontade de ler, e sim os títulos que  gostaria que chegassem aos olhos de outros leitores. “Para mim, publicar é tornar público: colocar na roda. Tornar partilhável”, defende.

Editar é narrar
Graduada em filosofia em 2008 na UFMG, Maíra Nassif tem interesse especial em estética. Sua dissertação de mestrado, concluída em 2011, teve como tema “Verdade e poesia em Martin Heidegger”. Destaca, no catálogo, a coletânea Varia aesthetica: ensaios sobre arte e sociedade, de Rodrigo Duarte. Acredita que obras como a do professor da universidade onde se graduou reforçam uma das missões que atribuiu à editora: dar vazão à “produção teórica nas áreas de filosofia, estética, artes, teoria e crítica literária.” A formação literária, por sua vez, ela atribui aos romances “na linha existencialista” que a acompanham desde a adolescência. Obras de Clarice Lispector, Kafka, Camus, Cortázar: “O jogo da amarelinha foi um marco para mim”. Diz que seu interesse sempre esteve ligado aos escritos que subvertem e apresentam possibilidades para a linguagem. O que não significa, Maíra garante, que irá mudar de lado e se tornar também autora. “Eu escrevia muito na época da faculdade: tinha um blog literário... Hoje percebo que a minha expressão se dá na escolha dos títulos da Relicário”, acredita. “Eles compõem uma narrativa: editar é a minha forma de narrar.”

Autores que gostaria de ter publicado e não conseguiu? Ela hesita. Diz que foi atrás de uma coletânea de poemas de Patti Smith até se frustrar ao descobrir que toda a obra da cantora, não apenas os romances já lançados, como Só garotos, está no Brasil com a Companhia das Letras. Por e-mail, um dia depois do encontro na Casa Relicário, Maíra complementa a resposta. Lembrou da inglesa Virginia Woolf (1882-1941). “Ela teve uma editora junto com o marido e ela mesma fazia a composição de seus livros em tipografia, realizava a impressão.” Tem vontade de editar As ondas, “meu preferido dela”, publicado pela primeira vez em 1931. “Pesquisando, fiquei sabendo que a escrita fragmentada e com espaços em branco do livro teve relação justamente com o trabalho de composição tipográfica/material da Woolf”, detalha, logo depois de ressaltar: “Ainda é possível publicar pois está em domínio público!".

O sonho não acabou, talvez esteja apenas começando. Cabem outras vozes, muitas vozes, na casa.


Guardador de palavras

A palavra “relicário”, em uma das definições incluídas nos dicionários e reproduzida no site da editora, é “caixa ou baú onde se guardam objetos pertencentes a um santo ou que foram por ele tocados”. Para Maíra Nassif, “em um sentido laico”, é possível fazer uma analogia com os livros. Assim, ela considera que sua editora é um lugar “onde se guardam as palavras, os textos, as memórias”. “O livro é, por excelência, o relicário das letras”, resume o texto de apresentação do site.


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