Jornal Estado de Minas

Vozes da poesia marginal: um rolê no Centro de BH com quem rima e luta

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Para o espanto do mercado editorial, uma poesia contemporânea que manifesta e arrepia a pele não está nos livros nem é escrita por mãos brancas. Às vezes, nem escrita é: é falada, gritada, para quem quiser aguentar a porrada e ouvir. Longe das métricas e às vezes sem rimas, o slam (campeonato de poesia falada) provoca a inquietude dos jovens, que em sua maioria estão na base da pirâmide da desigualdade. E lá não há palcos, holofotes ou cobertura das grandes mídias, é na rua que esses jovens encontram acolhimento, representatividade e, consequentemente, encontram-se na arte.


- Foto: FOTOS FRED BOTTREL/EM/D.A PRESS

O sentido original da palavra inglesa slam é “bater”, mas ela assume outros significados ao ser associada à poesia (poetry slam): espaço de protagonismo, competição entre poetas, lugar de apresentação de dilemas do cotidiano das metrópoles, onde ressoam versos de protesto. Normalmente, os participantes têm até três minutos para apresentar a performance – uma poesia de autoria própria, sem acompanhamento musical. O texto pode ser escrito previamente, mas também pode haver improvisação. Não há regras sobre a forma da poesia.

Os jurados são escolhidos entre as pessoas da plateia – que se forma, comumente, ao redor dos participantes. O campeonato começou nos Estados Unidos em 1986 com o operário Marc Kelly Smith, num bar periférico ao Norte de Chicago, e quem o trouxe para o Brasil em 2008 foi a atriz, diretora musical, MC e poetisa Roberta Estrela D’Alva.

 

  - Foto: FOTOS FRED BOTTREL/EM/D.A PRESS


O prêmio para o vencedor da batalha é, na maioria das vezes, o que o público pode dar. De uma ilustração feita na hora por outro artista que assiste até um cigarro picado de alguém desprevenido. A recompensa financeira não é a primeira finalidade para quem produz poesia marginal, concordam Gislaine Reis, Nívea Sabino e João Victor Gomes, três dos nomes que despontam nas batalhas de slam de Belo Horizonte. A convite do Pensar, eles deram um rolê pelo Baixo Centro da capital e recitaram os textos que estão nesta página, para marcar o Dia Internacional da Poesia, comemorado em 21 de março. 

- Foto: FOTOS FRED BOTTREL/EM/D.A PRESS

Gislaine Reis

Olhe bem pra mim
Pra mim. Bem aqui!
Eu não sou um discurso utópico
Não sou falas bonitas sobre periféricas

Não nasci princesa, nem escrava, nem humana
Não sou uma dama
É normal acordar antes do sol
E dormir por cima do lençol

No dia a dia, eu reescrevo a minha história com agonia
Não sou personagem principal e infelizmente,
Para outras como eu, é normal
Somos tachadas ao esquecimento

Nossas bandeiras são erguidas
Por quem não viveu nosso sofrimento
E se por um momento isso parecer ser a solução
Vou dizer e repetir: Não!

Eu não preciso de um narrador para a minha história
Pois eu não sou memória
Eu mulher negra e periférica sou o agora
E de agora em diante eu não me calo nem por um instante

Vou fazer jus à minha força
E torça pra que eu não te encontre
Eu não sou escada, não sou degrau pra se subir
Então não use a minha jornada pra ganhar curtidas na sua fan página

Não te darei seguidores
Escreva seu livro com as suas dores

E eu mulher preta me orgulho de quem sou e de onde estou
E sem dúvidas não vou parar por aqui
A minha estrada não tem fim
Não há limite que me impeça de seguir

Você, mulher preta
Se está a me escutar, levante-se! Saia do lugar!

Tome a bandeira da mão de quem não te representa
E entenda que absolutamente nada pode te parar
Tome de volta aquilo que te pertence
E erga a sua voz

Dê a vida o presente de contemplar sua grandeza
Mulher preta, se erga!

Faça presença nessa peleja
Não pare diante da tristeza
Não pare diante da decepção
Não pare diante da soberba

E mais uma vez eu digo
Me dá a sua mão?!
Se realmente ninguém consegue nos enxergar
Somente juntas, de mãos dadas conquistaremos um lar

Então acordem Dandaras!
Acordem Carolinas de Jesus
Acordem Maria, Fernandas, Luizas
Nathalias, Andreas, Jocastas
Acordem Gislaines
Acordem guerreiras!

Sejamos o agora
E não o amanhã de outra história

>> A ibiritense Gislaine Reis, de 26 anos, é poeta há um ano, por influência de amigos, e no pouco tempo que escreve já conquistou o pódio de vice-campeã do Slam-MG 2018.

Também é professora de teatro e usa a poesia para incentivar mulheres negras a lutar por igualdade.

***

- Foto: FOTOS FRED BOTTREL/EM/D.A PRESS

Nívea Sabino

Ainda persiste o olhar que a mim difere
Que profundo fere
Que segregar prefere
Por questão de tom de cor de pele

Depois de escravizar
E pseudolibertar
E desqualificar
Do meu cabelo à minha crença

No meu orixá
Vejo surgir um cortejo
Feito marujada que passa
Um canto, um coro, um real esforço
Pra se reparar o que não se repara
Reflexos de uma história
Que por nós enfim começa a ser contada

O povo negro resiste
No saciar da sede
Que mata na seiva
Das próprias raízes

O fazer plantar flor
Dignidade através da dança
Na luta germinada ao suor
Que escorre da bruta labuta

Buscando no seu penoso caminhar
Experimentar o sabor da fruta, da poupa, do paladar
Do direito pleno às oportunidades
Sobre os solos férteis da igualdade

>> A poetisa nova-limense Nívea Sabino, de 38 anos, é conhecida no meio da poesia marginal como influenciadora de grande parte dos jovens que se arriscam a recitar. Sonhava ser cartunista, porém, agora considera que continua desenhando – mas com palavras. 

***

 



João Victor Gomes


É que eu tenho falado muito sobre ficar rico
E avisaram que é pra eu tomar cuidado
Eles ainda não entenderam o real objetivo
De metade das coisas que eu tenho falado

É perigoso quando o homem descobre que pode voar
Mas não acho certo continuar no chão depois que descobre
Eu bato asa, mano, o voo é raso
Que aí fica abaixo dos radares e fácil de estender os braços
Pros meus

É que o corre pra crescer junto nunca foi uma disputa
Eu não quero se sobrar pra mim e faltar pra quem tá na mesma luta
Que aí meu corre não valeu de nada

Desse jeito quantos que já virou
Meu sonho é abrir uma pá de loja na quebrada
E gerar vários empregos pra quem nunca desacreditou

É que se preto não emprega preto, ninguém emprega
E pra nós sobra o subemprego
E quem vive no submundo tá um passo de pedir arrego
Da vida

A depressão que nos hospeda é a mesma de nossos pais
São várias gerações e nada mudou
Meu sonho é poder hospedar meu pai
No hotel que ele ajudou a construir e nunca entrou

E eu sei que ele acredita no meu sonho
Só não entende o meu jeito de correr atrás
Então não pede pra eu parar porque não vai ter como
Me ensinaram a conquistar e agora eu não paro mais

É que pai é cabuloso quando pensa no filho
Eu entendo, mano, é preocupante
Quando penso no meu menor eu chego até suar frio
É que o ronco da minha barriga não é o mais importante

Pai que se dedica mata um leão por dia
Agora pai de filho preto já nem conta os leão
Preocupação é ter pra colocar no prato da família
E reza pra que seu filho não seja o próximo a cair no mata-leão

Aplicado pelo segurança branco no preto empresário confundido
O tom de pele incomoda então vamo ser franco
A voz do preto é a cura pra esse tal racismo
E o punho fechado funciona se ele se fizer de mudo

Eu juro que eu tentei ser pacifista
Mas sou folgado pra caralho e não sei me fazer de mudo
E não consigo mais romantizar artista
Por mais que eu seja um e faça parte dessa lista
Sei que isso não me difere de ninguém
E se um dia eu gritei junto a frase “fogo nos racista”
Foi por medo do meu filho ter que gritar essa frase também

Sangue derramado é sangue
Preto tu sujaste as mãos
Tira seu ego da estante
Não erga essa bandeira em vão

>> João Victor Gomes, de 20 anos, começou a escrever aos 16 por influência dos sambas de Noel Rosa e das batalhas de improviso de rap que via os amigos fazendo na escola. Ele se assumiu poeta pela primeira vez quando recitou no Slam Clube da Luta no Teatro Espanca.

***

Pieta Poeta

Tá tudo imóvel, tudo estático
Tudo já coberto com uma fina camada de poeira
Eu estou soterrada de tal maneira que a mobília tem me sufocado
Os velhos brincos e pulseiras têm me sufocado

Eu preciso de fogo, de eletricidade, de combustível
De jogar tudo fora, de abrir porta-treco
Me desfazer de certos gestos
E jogando no chão tudo que eu não sei
Tudo que é dois números menor que eu
Tudo que for purpurina de outro carnaval
Mágoa feita em dois mil e vendaval

Vendaval sou eu que jogo tudo pra cima na segunda-feira
Vendaval sou eu que não espero nenhuma quarta de cinzas

Eu tiro do lugar esses quadros, esses atos, esses fatos
Eu quero jogar tudo fora, encher sacos e sacos, depois lavar a casa
Tomar um banho de folha, por um punhado de sal nos cantos
Cessar os prantos e voltar a voar com a velha vassoura

Se não tiver espaço pra mim, eu vou ser obrigada a abrir
Eu vou ser obrigada a não me obrigar a sair assim
Essa casa é minha, peraí

Eu não posso morrer no marasmo
Eu não posso naufragar no tempo
Eu não posso engolir as coisas
Pra depois me envenenar por dentro

Eu vou tirar a velha decoração
Apesar de ser velha de coração
Eu não esqueci como é que faz pra dar flor

Eu guardo sempre no bolso um botão
Pra abrir em emergências como essa
Só se flor... Só se flor eu saio dessa!

>> "Palco não me assusta, falar para muita gente não me assusta. Câmera: o meu problema é a câmera", diz a campeã do Slam-BR 2018, Pieta Poeta, de 24 anos, ao justificar o motivo pelo qual não quis tirar foto para essa publicação. Expulsa de casa aos 14 anos pela mãe, Pieta morou durante um tempo na rua e, apesar das dificuldades, este ano vai representar o Brasil na copa do mundo de poesia falada em Paris, na França.

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