“A alma não se rende ao desespero sem haver esgotado todas as ilusões (…) Não sou uma pessoa caridosa, é uma constatação horrível, Olívia. A idade deveria ter me melhorado, mas só sei sentir as dores alheias mais sofisticadas. Traumas edipianos, pulsões de morte, fobias histéricas, obsessões, ideias delirantes. Fome? Frio? É básico demais. A aflição de uma mãe na porta da padaria que não tem o que dar de comer a um filho me azeda mais do que comove na direção de ajudá-la. Para que teve filho, então, se não consegue alimentá-lo? E essa pergunta bruta se volta contra mim: por que tive eu uma filha, se não consigo alimentá-la?. Vejo projetada sob todo o meu ser a sombra dolorosa da realidade daquela mulher maltrapilha, que, mais forte do que eu, tem pelo menos a coragem de pedir ajuda. São as ferroadas da incoerência.
Assim, Biá, uma das protagonistas de A natureza da mordida, segundo livro da jornalista e publicitária de BH Carla Madeira, faz um desabafo sobre suas contradições para a amiga Olívia. O livro, uma longa declaração de amor à literatura, narra o encontro de Biá, psicanalista já no fim da vida, que carrega na alma as dores existenciais do mundo, desiludida pela perda do amor do marido e pela dificuldade de conviver com a filha, e a “desconcertantemente linda” e jovem Olívia, de cabelo ruivo e olhos verdes, também ressentida pela perda de uma grande amor. Amigas circunstanciais, elas se encontram frequentemente em uma banca de revista que abriga um sebo para trocar suas tristezas e dores. E nesses dramas as duas vão tecendo suas teias de dissabores.
Se em seu primeiro livro, Tudo é rio, que retrata um triângulo amoroso cruel envolvendo Lucy e Dalva, duas mulheres extremamente fortes, cada uma à sua maneira, e Venâncio, um homem desajustado, Carla apresenta o sofrimento visceral, físico e violento, que extravasa sangue, em Na natureza da mordida ela transmuta o sofrimento físico em angústia existencial. Olívia é aprendiz e bebe na fonte de dores de Biá, uma mulher culta, já desgostosa da existência e em acelerado processo de demência. Quando diz “a alma não se rende ao desespero sem haver esgotado todas as ilusões”, referência a Os miseráveis, de Victor Hugo, Biá parece mostrar que não há mais salvação. Mas, entre idas e vindas, em outro encontro com a amiga, ela admite a esperança: “É bonito ter uma história triste.
FONTES UNIVERSAIS
Aí está o recado de Carla com sua triste, bela e poética obra: o sofrimento não precisa ser irremediável, pode ser uma catarse da angústia existencial. Assim é em Tudo é rio e parece ser em A natureza da mordida. Os dois livros são uma grata surpresa para quem ama filosofia e literatura, para quem evolui enquanto sofre as tristezas insolúveis da vida que só a morte pode apagar. Ou não.
E não é um defeito, apenas incompletude, não constarem nessa lista de sofrências de Carla dois mestres do existencialismo: Arthur Schopenhauer, não por acaso autor de As dores do mundo: “As grandes dores fazem com que as menores mal sejam sentidas e, na falta das grandes, até o menor desgosto nos atormenta”. E também: “Quanto mais elevado é o espírito mais ele sofre”. O outro é o poeta maior, Fernando Pessoa, e seu inquietante Livro do desassossego: “A alma humana é vítima tão inevitável da dor que sofre a dor da surpresa dolorosa, mesmo com o que devia esperar”. Assim, entre doces lembranças e amargas saudades, Carla Madeira ensina: “A consciência traz a imensa dor da nossa condição. Ela nos obriga a uma busca inglória de algum significado para a vida”.
A NATUREZA DA MORDIDA
Carla Madeira
Editora Quixote+Do
265 páginas
R$ 52,90
TRECHO DO LIVRO
“A vida não é de confiança, Olívia, nos apunhala com a mesma faca que passa manteiga. A vida, essa senhora banguela, não teme a feiura e faz coisas medonhas com sua boca murcha que não lhe inibe as gargalhadas.
Entrevista
CARLA MADEIRA
Escritora, jornalista e publicitária
A protagonista Biá se diz uma “avestruz deprimida”, estudiosa de literatura e psicanálise. Ela afirma que sem sofrimento não há literatura. A literatura e o sofrimento existencial seriam uma catarse da vida?
A literatura é uma potente experiência de simulação. Nós nos colocamos no lugar do outro e, ao viver afetivamente a tragédia de alguém, organizamos nossa própria tragédia. Nesta perspectiva, é sim uma catarse, uma espécie de enfrentamento dos nossos medos, das nossas perturbações.
Biá faz citações de diversos autores, que são listadas no fim do livro. O acúmulo de conhecimento gera angústia existencial por levar à compreensão das dores do mundo?
Não é à toa que o fruto da árvore do conhecimento nos expulsou do paraíso e nos colocou a possibilidade dos infernos. A consciência traz a imensa dor da nossa condição. Ela nos obriga a uma busca inglória de algum significado para a vida, mesmo sabendo que estamos à deriva e no final da história morreremos... Não é fácil, né? Mas como bem disse Hannah Arendt: “Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”.
Depois de escrever Tudo é rio e A natureza da mordida, obras permeadas pelo sofrimento, fica a pergunta para a escritora, jornalista e publicitária: escrever dói?
Escrever é intenso. Há sofrimento no processo, há sofrimento na empatia com os personagens, mas há sobretudo a delícia de uma entrega. A propósito, este é um bom sentido que podemos dar à vida: entregar-nos ao que nos rouba os sentidos.
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