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Entrevista/ José Miguel Wisnik (Professor de literatura, músico e autor de Maquinação do mundo - Drummond e a mineração)


01/02/2019 05:09

Como se coloca, na obra de Drummond, a relação entre o universal e o particular?
Em Minas Gerais, a natureza e a cultura estão muito entranhadas uma na outra, o cerrado ganha uma dimensão metafísica. As minas e as montanhas, em Drummond, ganham também uma dimensão metafísica. Esses grandes escritores – um é o maior prosador brasileiro do século 20 e o outro é o maior poeta brasileiro do século 20 – conversam com as montanhas, mesmo sem falar. Vemos isso no conto O recado do morro, de Guimarães Rosa, em que a montanha fala. Em A máquina do mundo, de Drummond, a montanha também fala. Isso é significativo pelo fato de que a experiência – coletiva, imemorial e social – está profundamente ligada a um embate, a um corpo a corpo, e à imaginação da terra. Em Guimarães Rosa, a biodiversidade do cerrado, o terreno de calcário muito permeável, os morros são todos vazados por grutas, rios subterrâneos, o que faz a obra dele explorar uma “biodiversidade linguística”, vocabular e, ao mesmo tempo, uma exploração dos recados da própria natureza e, em última análise, da “terceira margem do rio”. Em Drummond, é a própria dureza mineral, o embate com o obstáculo, com a pedra no meio do caminho, que está para Drummond como a “terceira margem do rio” está para Guimarães Rosa. O Morro da Garça, de O recado do morro, está como o Pico do Cauê para Drummond.

A montanha, no caso da literatura mineira, é sempre presente, não é?

Neste momento dessa hecatombe, dessas tragédias mineiras a que estamos assistindo, essa devastação, essas tragédias anunciadas, porque estão praticamente no programa, pode-se dizer, de uma exploração mineral cega, estão no resultado que vemos em Minas. A história da mineração criou no território de Minas Gerais uma série de castelos de cartas, que são essas montanhas de rejeitos. Isso está arriscado, como todo castelo de cartas, a cair, a tombar. Os laudos não dizem isso porque os laudos são cegos para isso, como disse o laudo alegado pelo presidente da Vale, porque está presente, no modo de atuar, uma busca sem limites de acumular, de exploração, de quantidade sem limites, de resultados e de lucros que não considera o modo como aquilo está em relação com o ambiente, com os modos de vida e com o social. E há o fato de que, em Minas, existem esses modos de vida, singelos, rurais, simples, como em Bento Rodrigues, como nessas cercanias de Brumadinho. E é chocante o modo como a violência dos rejeitos acumulados caem sobre esse mundo singelo, que guarda uma espécie de pureza, que todos nós que não somos de Minas, reconhecemos em Minas Gerais. Está no jeito de falar, na música da fala, no jeito de se expressar, nos modos de sociabilidade, de convivência, de acolhida. Isso não está conivente com tudo isso que é tão comovente. Então, é isto que vem abaixo e é soterrado pela imprevidência, pela voracidade histórica pela qual a mineração se implantou nesse território riquíssimo de jazidas.  Essas coisas falam, como se fosse um recado.

Drummond manteve uma postura crítica muito clara em relação à Vale. Como vê essa relação do poeta com a política?
Nos anos 1950 – e em artigos posteriores –, ele tentou alterar e influenciar a política da Vale, que ele achava que era uma política danosa e de consequências nefastas, e que a companhia fazia de uma maneira desigual, crescendo exponencialmente com a exploração do ferro a partir de Itabira e, ao mesmo tempo em que a região não tinha uma contrapartida à altura, como se fosse lançada à própria sorte através de um progresso, mas que, na verdade, é um crescimento desordenado de uma extraordinária feiura, que é o correspondente do quanto há ali de devastação física e socioambiental. Ele dizia, portanto, que a Vale não se responsabilizava pelos males que causava e que desconversava sempre quando interpelada, no que ele chamava de “comédia embromatória”. Essa é uma afirmação importante porque essa embromação atravessa as décadas. E mesmo depois de Mariana, no sentido de assumir plenamente as consequências dessa enorme tragédia socioambiental que provocou, nós sabemos o quanto há uma embromação na resposta a isso. Agora, Brumadinho, com seu enorme custo humano, fala de uma maneira muito mais gritante e repetida sobre isso. E a pergunta é como vai continuar agora o expediente da “comédia embromatória” diante dessa tragédia.

Como é a relação de Drummond com a memória que guardou de Itabira?
Curiosamente, em Itabira espalhou-se a versão de que Drummond era indiferente e avesso em relação à sua própria cidade. Isso é de uma crueldade terrível porque não há na literatura brasileira um poeta cuja obra – do começo ao fim – esteja mais ligada à sua terra. É uma relação umbilical inseparável com a memória de Itabira. Na verdade, essa má fama de Drummond em Itabira está ligada às críticas que ele fez à Vale, ou que ele seria contra o progresso. Mas agora o progresso se apresenta com essa resposta catastrófica, que vem através dos tempos evidenciando questões e problemas que Drummond colocava há mais de 60 anos. Existe uma ligação sentimental profunda com a memória da cidade, mas também com modos de vida que se perderam e foram destruídos, sem que o “progresso” trouxesse para a cidade um aporte econômico e uma nova vida cultural. Ele é crítico desta concepção de progresso.

Criando uma hipótese, como acha que o poeta reagiria diante desta tragédia?
Não temos como responder a isso. Acho que, em vez de pensar como o poeta reagiria, nós é que temos que reagir lendo o poeta porque, de certo modo, tudo está dito nos poemas. Cabe a nós ler A máquina do mundo, que no livro Claro enigma é seguido de Relógio do Rosário, que é um dos mais belos poemas sobre a dor de existir, como uma dor coletiva. Temos que ler E agora, José?, que é um poema crucial para o momento que estamos vivendo. Temos que estar à altura da arte que se produziu no Brasil e em Minas Gerais, que é uma reserva humana que temos para responder a estas situações terríveis que estamos vivendo. A política não vai para frente se não incorporarmos a cultura.


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