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Diante de nós mesmos

Fuera del alcance de la memoria, antologia poética de Fabrício Marques traduzida para o espanhol, oferece panorama de uma lírica questionadora, reflexiva e de múltiplas vozes


postado em 01/02/2019 05:09

Em sua obra, o poeta Fabrício Marques constrói o eu lírico a partir do distanciamento e das experiências exteriores(foto: Márcio de Oliveira Lacerda/Divulgação)
Em sua obra, o poeta Fabrício Marques constrói o eu lírico a partir do distanciamento e das experiências exteriores (foto: Márcio de Oliveira Lacerda/Divulgação)


A antologia Fuera del alcance de la memoria (Fora do alcance da memória), do mineiro Fabrício Marques, reúne uma série de poemas traduzidos por Augustín Arosteguy. A publicação é da editora peruana Vallejo & Co., com apoio da Biblioteca Nacional do Brasil. Tem o mérito maior de disponibilizar a leitores de língua castelhana a produção de um dos nomes mais respeitáveis da cena poética brasileira aparecidos nos últimos 20 anos. Estimula, por outro lado, avaliações críticas da trajetória de uma poética.

Depois de primeiras produções artesanais que tiveram circulação restrita no início dos anos 1990, Marques apareceu nacionalmente em 2000 com o livro Samplers (Relume Dumará), trabalho premiado em concurso promovido pelo governo da Bahia. Três outros livros consolidaram o poeta nascido em Manhuaçu, Leste de Minas, em 1965: Meu pequeno fim (Scriptum, 2002), A fera incompletude (Dobra Editorial, 2011) e A máquina de existir (Pedra Papel Tesoura, 2018).

Fuera del alcance de la memoria nos convida a pensar sobre o movimento da poesia de Fabrício Marques pelo contemporâneo. Primeiramente, sobre como um mesmo “veículo”, o repertório legado pela modernidade, é operado por esse outro poeta, sobre o que o difere em meio aos poetas que constituem, para efeitos de história literária recente, sua geração.

Vê-se que se trata de um poeta em trânsito permanente, cujo traço distintivo é a impermanência da forma. As oscilações formais denunciam um mal-estar do sujeito histórico, daquele que se define em relação com objetos mundanos, materiais, situações etc., não em abstrato, encerrado num idealista universo particular.

Extraído do enigmático En la estación (Na estação), o título da coletânea metaforiza, com precisão, o lugar de passagem, a instância transitória, como referente fundante de um gesto poético. A poesia é, para ele, lugar de chegada e partida, espaço movente, onde a produção de sentido consiste na movimentação de dados diversos, imagens e relatos, de modo a configurar microestruturas reflexivas.  Estas se sustentam para além do horizonte estético, como perquirições éticas capazes de interessar a leitores de tempos e lugares diversos.

Esse modo de fazer é muito revelador da natureza do poeta, uma presença discreta entre seus pares geracionais, um estrangeiro familiar, digamos, que se inscreve no horizonte lúcido-lúdico de Sebastião Uchoa Leite e Affonso Ávila. A “estrangeiridade” do autor, sua dissonância em relação a uma gama de emuladores de João Cabral de Melo Neto (1920-1999) no país, é o que esta antologia exibe de mais valioso ao público leitor castelhano.
A fonte literária mais distante dessa “estrangeiridade” é a corrente “coloquial-irônica” do Simbolismo francês, para recordar Edmund Wilson (1895-1972). A fonte intermediária é Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) da produção inicial e derradeira, bastante “jornalística”. A fonte imediata é Paulo Leminski (1944-1989), referência de enfrentamento clínico do poema, sempre percebido como máquina a ser montada e desmontada, de modo a funcionar estranhamente – desfuncionando até.

Esse funcionamento estranho exibe uma complexidade pertinente ao eu enunciador, sobre quem fala no poema, como observou, em face de Samplers, Ricardo Aleixo. O artifício proporcionado pelo sampler, efeito produzido maquinalmente, é a mistura de vozes, resultando na confusão entre a voz do poeta a voz do poema, a voz do leitor e outras tantas vozes, instaurando-se uma atmosfera babélica.

O risco que o poeta correu, ao longo dos seus quatro livros, foi misturar vozes diversas sem perder sua própria voz, sua identidade diferente. Pode-se dizer, diante de Fuera del alcance de la memoria, que uma espécie de “transvoz”, resultante do trânsito entre vozes misturadas, apresenta-se aqui como voz própria. Essa voz se perfaz de modo performativo e, por isso mesmo, não nos expõe uma essência pessoal, mas uma experiência comum, coletiva.

Poemas como Totem para el homo zapping (Totem para o homo zapping), Mi humanidade (Minha humanidade) e Esmoquin y estricnina (Smoking e estricnina) são exemplares da “transvocalidade” que passou a constituir, precisamente a partir de A fera incompletude, a particularidade vocálica do poeta, processo que tem seu impulso fundamental em alguns poemas de Meu pequeno fim.

Esse processo é marcado por um esfacelamento gradativo da ideia de lírica, que tem, como contrapartida, um devir narrativo no poema, configurando-se um tipo muito produtivo de relação antagônica entre criação poética e vida social, diferente daquele percebido por Theodor Adorno (1903-1969) ao refletir sobre lírica e sociedade: quanto mais interior, mais subjetivo, mais expressivo sobre o exterior, o mundo objetivo.
A partir de fora, a partir do distanciamento que o dispositivo épico proporciona, não de dentro, com os arroubos de um eu, é que uma cartografia corrosiva da experiência social se efetiva na poesia de Fabrício Marques.

Referências artísticas diversas animam esse processo, a começar pelo jornalismo, passando pelo cinema e pelas artes plásticas. Nessa espécie de fricção sígnica, o espaço poético, com seus autores modernos e suas vidas estranhas para os padrões ditos normais de sociabilidade, desempenha papel inspirador.

Essas referências constituem peças da máquina do poeta, que promovem seu funcionamento tanto quanto seu desfuncionamento, que a montam tanto quanto a desmontam. São exemplares, neste sentido, poemas como 4 cuartetos (4 quartetos), paródia do Four quartets, de T. S. Eliot (1888-1965), e Cómo ellos mueren (Como eles morrem), sequência de relatos curtos sobre a morte de poetas célebres. A performatividade, a transvocalização, impõe-se nesses trabalhos como a obra mesma, que nos desafia pensar, afinal, qual o seu sentido.

O poema La búsqueda (A busca) nos estimula a perceber esse sentido como a procura do próprio sentido num mundo saturado pela acumulação de coisas sem sentido. No lixão-mundo, o grande desafio há muito tem sido manter a própria sanidade, resistir à conversão em coisa inútil também. Na transnarrativa, que gira em torno de si mesma, um assistente de artista plástico famoso sai a procurar mármore de Carrara, matéria-prima para a obra que seu chefe criará. Em meio à turbulência de uma cidade em dia de grande evento, esse assistente só consegue encontrar outras coisas, nunca o que está procurando.

O texto traz uma epígrafe-motivo do artista plástico Cildo Meireles: “A sina do artista é a de um garimpeiro, que é alguém que vive de procurar o que não perdeu”. Sem dúvida: a procura da poesia, para lembrar uma vez mais Drummond, move o projeto poético de Fabrício Marques, uma poesia que não se alcança mais a partir da penetração no reino das palavras, que, no tempo da pós-verdade, já não se faz apenas com palavras. Fuera del alcance de la memoria nos coloca, assim, diante de nós mesmos, da nossa perplexidade cotidiana.

*Anelito de Oliveira é doutor em literatura brasileira pela USP e autor, entre outros, de A aurora das dobras (ensaio), Traços (poesia) e O iludido (narrativa).

 

 

FUERA DEL ALCANCE DE LA MEMORIA – ANTOLOGÍA POÉTICA
(1998-2018)
De Fabrício Marques
Tradução de Agustín Arosteguy
Vallejo & Co. (Peru)
146 páginas

 

EN LA ESTACIÓN

Dos o tres de nosotros, en el silencio
del desasosiego, ávidos y primeros,
embarcaron, silbidos largos, silbidos breves
– el interlunio a punto de llegar al fin –
acomodados en asientos contíguos

Dijo el más viejo:
“este viaje no lleva a ninguna parte,
pero no puede parar”

Aun no teniéndolos, veía antílopes en la planicie,
sueltos, aéreos, levitantes,
fuera del alcance de la memoria

Por un hilo de sueño el más joven
escondía su tesoro en la ensenada,
entre una ola y otra

Hasta que un movimiento brusco los reubica en los carriles
junto al tren, en dirección al camino más largo
corazón en plumas, deshonesto en el engaño
esparcido en el aire, en principio opaco, que aún pueden
– el más viejo y el más joven –
respirar

NA ESTAÇÃO

Dois ou três de nós, na calada
do desassossego, ávidos e primeiros,
embarcaram, silvos longos, silvos breves
– o interlúnio prestes a chegar ao fim –
acomodados em poltronas próximas

Disse o mais velho:
“esta viagem não leva a parte alguma,
mas não pode parar”

Mesmo não os tendo, via antílopes na planície,
soltos, aéreos, levitantes,
fora do alcance da memória

Por um fiapo de sonho o mais novo
escondia seu tesouro na enseada,
entre uma onda e outra

Até que um movimento brusco recoloca-os nos trilhos
junto com o trem, em direção ao caminho mais longo
coração em plumas, impróprio ao ludíbrio
espalhado no ar, em princípio opaco, que ainda podem
– o mais velho e o mais novo –
respirar


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