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Porra, Parra!


postado em 11/01/2019 05:06

Foram 103 anos de vida, 80 de produção poética – mas, no caso do chileno Nicanor Parra (1914-2018), o lugar-comum de que a juventude independe do tempo cronológico se aplica inteiramente. Juventude, bem entendido, no sentido de rebeldia, vitalidade, irreverência, inventividade e, não por último, de aventura. Embora célebre desde a publicação de seu Poemas e antipoemas (1954) e amplamente premiado em vida (o poeta recebeu em 2011 o Prêmio Cervantes, o mais importante da língua espanhola), Parra permanece um autor a descobrir. Como afirmou seu conterrâneo Roberto Bolaño, a obra de Parra é misteriosa, como que lançada ao futuro.

Parra no Brasil

Irmão mais velho da cantora e compositora Violeta Parra, Nicanor é um autor a descobrir especialmente pelo leitor brasileiro. Apesar de sua celebridade no mundo hispanofalante que nos circunda, o mestre – ou melhor: antimestre – chileno foi, inexplicavelmente, pouquíssimo traduzido no Brasil. Entre nós, havia até hoje apenas uma antologia mista, publicada em 2009, dedicada a Nicanor e a Vinicius de Moraes – uma colaboração da Academia Chilena de la Lengua e da Academia Brasileira de Letras, com pouco mais de 20 poemas de cada autor e de pouca circulação comercial. Para além dessa antologia mista, dispúnhamos apenas de algumas raras traduções encontráveis na internet, como as realizadas e divulgadas pelo poeta Carlito Azevedo em suas redes sociais.

Nesse sentido, a antologia (anti)poética lançada há poucas semanas pela Editora 34, Só para maiores de cem anos, deve ser saudada como um louvável e urgente empreendimento editorial. Organizada e traduzida por Joana Barossi e Cide Piquet, essa bela antologia bilíngue reúne 75 poemas de seus principais livros e é, assim, a primeira grande coletânea de Parra publicada entre nós. De sua vasta produção, os tradutores optaram por apresentar um generoso recorte do que chamam de “primeiro Parra”, isto é, das obras publicadas sobretudo entre 1954 e 1973 – obras que giram em torno da ideia de antipoesia, a grande contribuição de Nicanor para a literatura do século 20.

Antipoesia

E o que é antipoesia? É verdade que pertencem às principais linhas de força da poesia moderna certos elementos e procedimentos técnicos que poderiam ser considerados antipoéticos. Trata-se de elementos que se voltam, tanto no plano da forma quanto do conteúdo, contra o rebuscamento, a idealização, a grandiloquência e a afetação de certa poesia tradicional. Contra essa poesia olímpica e distanciada da vida real (a “poesia poética de poético poeta”, como ironiza Parra), parte considerável da poesia moderna responde com o verso livre, o léxico coloquial e o tom conversacional, a temática cotidiana, o prosaísmo, a liberdade formal, o humor. Com ela, também Parra: “Senhores e senhores/ esta é nossa última palavra/ – nossa primeira e última palavra –:/ Os poetas baixaram do Olimpo” (Manifesto).

Nicanor, no entanto, ao caracterizar seu trabalho como antipoético, pretende realizar uma espécie de depuração e autorreflexão irônicas desses procedimentos antipoéticos já presentes na poesia dos séculos 19 e 20. Volta, assim, a dimensão antipoética da poesia moderna não apenas contra a lírica tradicional, mas também contra si mesma, contra o próprio poema e a figura do poeta modernos: “Durante meio século / A poesia foi / O paraíso do bobo solene. / Até que cheguei eu / e me instalei com minha montanha-russa. // Subam, se quiserem. / Claro que não respondo se saírem / Botando sangue pelas bocas e narinas”, escreve Parra em 1962. É uma questão controversa se, com isso, a antipoesia de Parra permanece no horizonte geral da poesia moderna; sabe-se que o próprio autor chegou a caracterizar algumas peças de seu livro Poemas e antipoemas, de 1954, como pós-modernas. De qualquer maneira, pode-se dizer com certa segurança que ele é um dos artistas a formular, à sua maneira, a questão sobre os limites da modernidade estética.

Autoironia e autorreferência

Pode-se ver o procedimento antipoético de Parra paradigmaticamente em peças autoirônicas, autorreferentes e autocontraditórias que desestabilizam a própria natureza do discurso e do sujeito poéticos. É o caso de textos célebres como Quebra-cabeças, com sua reiteração clownesca de versos simples e autoderrisórios: “Não dou a ninguém o direito./ Adoro um pedaço de trapo./ Eu troco tumbas de lugar.// Eu troco tumbas de lugar./ Não dou a ninguém o direito./ Eu sou um tipo ridículo./ Debaixo dos raios do sol,/ Flagelo das lanchonetes./ Ainda morro de raiva”. Ou de poemas que têm por objeto a autocompreensão do poeta em seu fazer poético, provocando a suspensão dos contratos estéticos habituais entre leitor e autor: “Eu não digo que ponha fim a nada/ E não tenho ilusões a esse respeito/ Eu queria seguir poetizando/ Porém a inspiração me abandonou./ A poesia se comportou muito bem/ Eu me comportei horrivelmente mal” (A poesia terminou comigo). Junto ao seu efeito de desestabilização antipoética, essas peças estabelecem um repertório múltiplo de “eus líricos” – quase se poderia dizer: um “bestiário antilírico” –, que não raro se sobrepõem, se complementam e contradizem: o bufão, o clown, o louco, o ladrão, o mendigo, o professor esmagado pela profissão, o poeta-defunto, o poeta que dorme em uma cadeira....

Não creio na via pacífica

A antipoesia de Parra se volta também contra certo ideário ético-estético da Modernidade e seus mitos fundadores, contra suas narrativas totalizantes e suas utopias políticas formadoras. É o que se vê em peças que são verdadeiros antimonumentos, como Solilóquio do indivíduo, contraposto ao Canto geral de Pablo Neruda quase como seu antídoto antipoético. A peça de Parra retraça a (pré-)história da humanidade a partir da figura do “Indivíduo” (uma espécie de individualidade protoburguesa em seu narcisismo e autocentramento peculiares), dissolvendo toda idealização e teleologia histórica, toda e qualquer mitologia de “sentido” histórico: “Eu sou o Indivíduo. / Bem. / Talvez seja melhor voltar àquele vale, / Àquela rocha que me serviu de lar,/ E começar a gravar de novo,/ De trás para a frente gravar/ O mundo ao revés./ Mas não: a vida não tem sentido”.
Ou, em registro mais claramente político, é o caso de peças extraordinárias como Não creio na via pacífica, que revelam o teor simultaneamente niilista e cômico de sua antipoética: “Não creio na via pacífica// não creio na via violenta/ eu gostaria de crer/ em algo – mas não creio/ crer é crer em Deus/ a única coisa que faço/ é encolher de ombros/ me perdoem a franqueza/ não creio nem na Via Láctea”.

O cômico

Com sua força corrosiva, a antipoesia de Parra procura congregar (e promover) a experiência da radical dissolução de sentido com uma comicidade peculiar. Com efeito, a experiência tipicamente antipoética é profundamente cômica – pode-se mesmo dizer que ela é inseparável do riso: “Eu não aceito que ninguém me diga/ Que não compreende os antipoemas/ Todos devem rir às gargalhadas” (Advertência). Perguntado sobre seu senso de humor, Parra teria dito que ele provém de suas leituras de Kafka e dos filmes de Charlie Chaplin, – ao que teria acrescido de imediato que quase nunca ia ao cinema. O humor tipicamente parriano é não raro autorreferente e autocontraditório, uma poderosa práxis discursiva que, ao revelar o próprio ridículo, revela também o ridículo de toda construção de sentido ideal – como, não por último, da poesia.

O “segundo Parra”


No que poderia ser considerada sua “segunda fase”, não contemplada nesta antologia, Parra diversificou sua produção e intensificou seu caráter experimental, sem jamais abandonar, é verdade, as diretrizes fundamentais da antipoesia. Nesta segunda fase, que compõe o segundo volume da edição catalã de suas Obras completas & algo =, Parra fabrica também várias séries de objetos estéticos híbridos – seus famosos Artefactos e seus Chistes parra desorientar a la polícia poesía – que mesclam ilustração, charge, desenho, colagem e escrita. Posteriormente, em nova guinada, publica seus Ecopoemas como forma de intervenção (anti)poética no debate ecológico então crescente, para além de seus conhecidos Sermones e de suas experimentações com versos de corte mais regional. Além disso, o matemático Nicanor Parra também era um grande tradutor e transcriador – um expropriador revolucionário, em suas palavras –, como atesta a obra Lear: rey & mendigo, sua famosa versão de Rei Lear, de Shakespeare.

Que a bela antologia (anti)poética ora publicada, que reúne trabalhos da primeira fase de Parra, possa inspirar outros empreendimentos editorais no Brasil que tenham como objeto também sua produção posterior.

Como diria Carlito Azevedo: Porra, Parra!


* Daniel Arelli é professor, poeta e tradutor. Doutor em filosofia pela Universidade de Munique, atualmente é pesquisador de pós-doutorado na UFMG. Seu primeiro livro de poemas, Lição de matéria, foi vencedor do Prêmio Paraná de Literatura de 2018.


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