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Um pequeno grande livro

O mineiro Daniel Arelli vence o Prêmio Paraná de Literatura com Lição da matéria, seu livro de estreia, em que constrói, ao mesmo tempo, versos simples e eruditos


postado em 04/01/2019 05:03

Daniel Arelli, de 32 anos, surpreende pelas referências às tradições literárias e filosóficas e pelo domínio da linguagem, sem cair em ciladas de rebuscamento (foto: Mauro Figa/Divulgação)
Daniel Arelli, de 32 anos, surpreende pelas referências às tradições literárias e filosóficas e pelo domínio da linguagem, sem cair em ciladas de rebuscamento (foto: Mauro Figa/Divulgação)


Sejamos didáticos já que vamos tratar de um livro intitulado Lição da matéria: trata-se de um voluminho magro, de apenas 77 páginas, esquartejado em seis livrinhos, que totalizam 38 poemas. É a obra de estreia de um poeta de 32 anos, chamado Daniel Arelli, que nasceu nas Minas Gerais, onde mora e trabalha hoje em dia, mas que passou boa parte de sua vida na Alemanha, onde se doutorou em filosofia com a tese “Materialismus und Kritik”. Precisa tradução? Vá lá: “Materialismo e crítica”.

Poderíamos dormir sem essa informação, mas já que começamos pelas abobrinhas (informação irrelevante, em jornalistês), sigamos em frente. Lição de matéria foi escolhido o melhor livro de poesia no Prêmio Paraná de Literatura 2018, que reuniu quase 800 vates tupiniquins, moradores da terra ou espalhados pelo globo. Um livro inédito premiado em um concurso dessa dimensão mostrará depois, ou não, a inteligência e a sensibilidade dos julgadores. Talvez se possa dizer que os jurados do certame paranaense – Marília Garcia, Ricardo Silvestrin e Wilberth Salgado – conseguiram pinçar em uma colossal montanha de originais um pequeno grande livro. O tempo dirá, mas eu acho que, sim, eles meteram o projétil bem no centro do alvo.

Agora, falando sério, podemos começar pelo último verso do livro. “Escapar da mirada que vê o próprio rosto em cada coisa.” Pronto: estamos diante de um poeta que não veio ao palco para lamber obscena e publicamente seu próprio umbigo. Ou seja, o leitor pode estar certo de que não vai escutar nenhum discurso (político, existencial), não verá ninguém morrendo de amores por outra pessoa e nem escutará doidões batendo palmas para o pôr do sol.

Vamos tentar destrinchar os seis livrinhos, aqui, seguindo a ordem ordeira.

O abre-alas, nomeado Abismo de imagens, reúne nove poemas. No primeiro deles, Daniel já anuncia que vai tentar acompanhar a “paisagem nua”, sem se projetar nela. No segundo, nos informa que Mark Horkheimer “teria ensinado a uivar seu próprio cão”. No terceiro, nos adverte que a espécie animal embora “até pareça inofensiva/ ou mesmo/ graciosa” é “perigosíssima/ e sabidamente/ traiçoeira”. No quarto, o poeta nos comunica que descobertas arqueológicas recentes parecem indicar, que, por um erro de tradução de placas de argila com trechos da Odisseia, o universo em que vivemos “terá sido sempre outro”.

Assim, já na abertura dos trabalhos, o culto e divertido Daniel nos faz lembrar do grande Mário Quintana, cuja obra foi toda construída para mostrar que a poesia não precisa ser, obrigatoriamente, fastidiosa.

Eppur si muove, é o título do segundo livrinho, formado por seis poemas. Poderíamos escolher qualquer um para comentar, mas ficaremos com aqueles belíssimos versos que nos falam de animais. Esquartejo um deles: “Quando enfim matarmos o último rinoceronte... Não teremos mais uma imagem tão precisa do medo”. Outro, sobre os polvos, pede ao leitor que “tente fazer sentido/ da ideia de vida/ como intrusão ou acaso”.

Ao terceiro! É o que dá nome ao livro. Lição da matéria contém apenas quatro poemas. Há o magnífico Hic Rhodus, hic salta, mas nos contentaremos com o zombeteiro O punhal de ferro de Tutâncamon. Contra a opinião de arqueólogos, antropólogos e filósofos, que surfaram na maionese pelo fato de o punhal do faraó ter sido fundido a partir de um meteorito, o jovem bardo das Gerais prefere saudar o fato de a arma ter sido “feita de ferro/ 11% de níquel, com traços de cobalto”.

Oficina abstrata, o quarto livro, trata da escritura. Começa com uma advertência ao leitor desatento, que deve realizar “uma paradoxal operação/ para que toda leitura/ seja também sua criação”. Depois, Wittgenstein confessa que pensava com sua caneta, visto que sua cabeça “não sabe nada/ sobre o que minha mão/ está escrevendo”. Outro poema nos ensina que se só conhece a verdadeira poesia “pelo corte do verso”. Esse poema, claro, levará muitos leitores a se lembrarem de João Cabral de Melo Neto. Talvez armado com uma faca que é só fio, em Dacar, num dia de verão senegalesco, esculpindo em dura madeira um ídolo pagão.

Um retrato que não fosse um autorretrato é o título do quinto. Atenção à mensagem clara: não temos nenhum Narciso por aqui. Vamos fazer o retrato de um homem que – como diria o aedo Jorge Luís Borges, veraneando em Adrogué, Uruguai – é todos os homens. Vamos passear ao lado dele por Ouro Preto, Pará, Portugal, Praga e Berlim. Embora consideremos que a poesia tem compromisso apenas com a inutilidade e o prazer, ressaltaremos aqui a única referência desta obra a um fato concreto – de dimensões bíblicas! – do vale de lágrimas em que vivemos hoje.

Num dos poemas de Berlim, o poeta está conversando com uma garota doidona “que falava de festas e drogas/ de seu novo emprego de florista/ e de como tinha tentado se matar”, quando sente que “perto dali, no departamento de estrangeiros/ um homem provavelmente/ implorava/ para ficar”.

Nem vimos o tempo passar e chegamos ao sexto livrinho: Sou um outro e seu reverso. Vamos nos concentrar no primeiro e irônico poema. Nele, Daniel assegura “que o nome próprio é uma maldição”. Fala então do profeta judeu Daniel, que (“Sofria também de azia”) e que por ser “um completo farsante”, foi lançado ao mar “e devorado por um cachalote”.

Obviedade: leitores sofisticados se deliciarão com as referências eruditas (poetas, filósofos, pintores se revezam nos malabarismos), com as sacadas filosóficas e com os elegantes jogos de palavras. Já o pedestre resenhista, quintanesco e cabrálico, reviu em Lição de matéria seus dois poetas mais estimados – o cerebral, seco e certeiro João Cabral de Melo Neto e o ditirâmbico, simpático e brincalhão Mário Quintana –  por trás de Daniel, soprando frases para ele, dando-lhe dicas, sugerindo cortes e acréscimos. Não vamos mentir nem no final: este é um livro para pessoas cultivadas e de uma sensibilidade mais (ó pedantismo!) requintada.

* Lourenço Cazarré é jornalista e escritor, autor de vários livros publicados, incluindo o infantojuvenil Os filhos do deserto combatem na solidão (Cepe, 2017). Seu mais recente romance, Kzar Alexander, o louco de Pelotas, recebeu recentemente o Prêmio Paraná de Literatura 2018.


Poemas

DEVANEIO EM OURO PRETO

1.
Pilar

Desperto solitário nos degraus da escadaria.
Pombos disputam farelos de ouro.
A fuligem das telhas não se deixa limpar.
Creio avistar ao longe uma mulher em negro.
Entreouço na lama o murmúrio do rio.

2.
Balada sobre a Ponte de Antonio Dias

importa pouco o que se fez
eram noites brancas
sobre a Ponte de Antonio Dias
tu apontavas as torres
os picos as casas as pedras
da inteira cercania
contavam pouco os nomes das coisas
eram noites brancas
sobre a Ponte de Antonio Dias

3.
Hotel Toffolo revisitado

Adentra o salão da modesta hospedaria
que resiste, tímida, à máquina da nova cidade
pulsando arfante no coração da velha.
Dispõe a mesa contra a parede,
uma mesa sólida contra a parede intransponível,
e senta-te só, com o pouco silêncio possível.

Este pão com que ora te sacias,
toma-o como o pão primeiro
do qual partem todas as fomes
e ao qual todas retornam, apaziguadas.
(“Cuidai primeiro do que comer e vestir
que o Reino dos Céus virá por si”).
Esta palavra que tu ora calas,
concebe-a como a última fortaleza
contra a loquacidade do presente.

4.
Bauxita

Bauxita, engano antigo
nem todo elemento extrai-se
puro dos veios da serra

Bauxita, oblíquo labirinto
quanto mais perto do céu
mais perto também da pedra

5.
Rua Alvarenga

Percorremos a Rua Alvarenga
do Rosário às Cabeças
pernas e pés exaustos
uma única luz dormia acesa
na noite imensa
Na farmácia do Sr. Garcia
não há remédios, há rezas
para pernas e pés exaustos
percorrerem a Rua Alvarenga
do Rosário às Cabeças
Ninguém viu de onde veio a procissão
uma única luz dormia acesa
na noite imensa

 

 

LIÇÃO DA MATÉRIA
De Daniel Arelli
Edição da Biblioteca do Paraná
77 páginas
R$ 35
R$ 20 (41) 3221-4951


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