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Entrevista/Pablo Diener e Maria de Fátima Costa


postado em 21/12/2018 05:03

Os pesquisadores Pablo Diener e Maria de Fátima Costa, autores do livro(foto: Paulo Jabur/Divulgação)
Os pesquisadores Pablo Diener e Maria de Fátima Costa, autores do livro (foto: Paulo Jabur/Divulgação)

Nos séculos 18 e 19, a ciência abrangia amplas áreas de conhecimento, perspectiva bem distinta dos métodos científicos atuais. Como era a compreensão da ciência naquele início do século 19?
As expedições da primeira metade do século 19 ainda estão sob o império do pensamento iluminista que aspira a um saber universal. Há uma concepção abrangente de todos os saberes e de formação integral do indivíduo culto. Poderíamos dizer que o ideal vem dado pelo modelo da Enciclopédia, que se propôs oferecer uma grande síntese de todo o conhecimento. No século 19, essa unidade começa a se romper, mas ainda de modo muito rudimentar. Um exemplo paradigmático para todos os viajantes europeus era a personalidade e a obra de Alexander von Humboldt (1769-1859), um homem com domínio técnico e teórico em todos os campos científicos, e sua obra pretende, ainda, de fato, construir uma grande síntese do universo: nos referimos especialmente ao seu opus magnum, o Cosmos, publicado por volta de meados do 19.

O que o conhecimento científico a respeito das Américas representava para os poderes coloniais europeus?
Sabemos que, nos tempos modernos, o expansionismo imperial europeu fora do seu espaço continental foi um empreendimento no qual se destacaram, sobretudo, as grandes potências, que haviam constituído um Estado centralizado, em primeiro lugar, a Grã-Bretanha, a França e a Espanha. A Alemanha apenas teve participação nesse processo. Os impulsos expansionistas do mundo alemão se concentraram no seu território mais imediato, com destaque às políticas da Áustria e da Prússia. A Baviera, no início do século 19, era um Estado novo e política, militar e economicamente frágil. É nessas circunstâncias que Martius formula a sua ideia de uma “conquista espiritual”, provavelmente pensando no modelo da Prússia, que se impunha culturalmente pelo seu estupendo modelo educacional.

Esse conhecimento, portanto, tornou-se uma competição.
A disputa para ser o primeiro a identificar uma planta ou um animal foi uma questão presente em todos os viajantes. Tinha a ver com ganhar a primazia no campo das ciências, mas também quanto às expectativas de futuras explorações. E a isso se somavam rivalidades pessoais, como a que constatamos que existia entre os bávaros Spix e Martius e o francês Saint-Hilaire. E outras, inclusive entre os próprios expedicionários do espaço de língua alemã. Spix e Martius também tinham ciúmes dos trabalhos que realizavam os prussianos e até os austríacos.

Para vencer esta corrida, era necessário tornar público o material coletado. Como foi a publicação dessa pesquisa de Spix e Martius?
Para es expedições científicas, sempre foi fundamental publicar os resultados das empreitadas científicas. Como em certa ocasião escreveu um famoso viajante francês, Francis de Castelnau, o que não foi publicado não existe para as ciências. Isso é um fato para todo expedicionário. Spix e Martius contavam com condições ideais para concluir seu projeto. O rei Maximiliano José I pôs à sua disposição uma estrutura institucional para que isso se materializasse. E eles não perderam tempo. O projeto foi minuciosamente elaborado e realizado com luxo de detalhes. As obras previstas cobriam todos os campos do saber. E, de fato, contaram com um corpo de auxiliares bastante significativo. A narrativa, mesmo que publicada num prazo de oito anos, foi seguida com muito interesse pelo público europeu. Oferecia preciosas informações de um território até então pouco conhecido. E tanto as publicações de zoologia, que Spix conseguiu concluir nos poucos anos de vida que lhe restaram depois do seu retorno a Munique, como as de botânica, que Martius realizou ao longo de toda a sua vida, representam obras emblemáticas nos seus respectivos campos. Mas, certamente, também as publicações sobre as línguas indígenas foram de grande interesse para os contemporâneos. Em cartas, Jacob Grimm comenta sobre os trabalhos linguísticos e etnográficos de Martius, e chama a atenção que essas obras teriam sido de grande utilidade para pensar a reedição de um dos seus trabalhos sobre as línguas e os costumes dos povos germânicos. Mas um dos trabalhos mais comentados de Martius foi o seu ensaio sobre a história. O famoso escrito publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Como se deve escrever a história do Brasil, representa a primeira abordagem sistemática sobre a metodologia a ser adotada para a escrita da história do Brasil. Ainda hoje, esse pequeno tratado é analisado com interesse pelos historiadores.

Embora se tratasse de um zoólogo e um botânico, Spix e Martius registraram importantes dados sobre etnografia e linguística dos povos indígenas. Qual a relevância desse material produzido por eles?
À época, e desde finais do século 18, a questão do conhecimento das línguas do planeta tinha se tornado um problema de grande interesse para a cultura europeia. Eram os tempos de estudo e identificação das grandes famílias das línguas no continente europeu: as românicas, as germânicas, as eslavas e a procura de um antecedente comum. Essa curiosidade também foi trasladada para o continente americano. Spix e Martius, indivíduos cultos, estavam informados sobre essa tendência das investigações filológicas na Europa. E tinha noções básicas sobre os procedimentos metodológicos para a realização dessas tarefas e a própria academia tinha encomendado a realização dessas tarefas. Mas Spix e Martius desenvolveram esse assunto com especial interesse. Posteriormente, Martius continuou trabalhando naquele campo, relacionando-se com grandes linguistas do seu tempo. Martius assume, em consonância com o grande germanista Jacob Grimm e outros linguistas, que a língua é um documento para o conhecimento dos povos, suas tradições, costumes e história. E foi nessa linha que levou adiante suas investigações, tarefa na qual foi muito bem-sucedido.

A expedição tinha também o objetivo de documentar a flora brasileira com fins farmacológicos. Como era esse interesse na época e o que mudou desde então?

Os trabalhos de taxonomia vegetal desde muito tempo estavam associados às investigações farmacológicas. Isso não constitui uma novidade da expedição bávara. Porém, sem dúvida, Martius colocou enorme ênfase nesse aspecto ao fazer a descrição das espécies florísticas; as observações sobre cada uma das espécies trazem indicações sobre a sua utilização entre os povos nos quais essas plantas eram nativas. E, claro, isso faz parte do propósito de todas as expedições científicas à época. Esse tipo de exploração está vigente até os nossos dias. Trata-se de um procedimento que, mesmo que hoje esteja submetido à regulamentação, continua vigente em grande escala.

A visão de Martius sobre a gente brasileira é claramente eurocêntrica, usando termos como “preguiçosa, inculta, de maus hábitos” para se referir ao que via aqui. Como esses relatos contribuíram para criar uma visão negativa a respeito do povo brasileiro?
Martius é um homem europeu do seu tempo e, como a maior parte dos seus contemporâneos e a grande maioria dos cientistas viajantes, assumia como fato fora de dúvida que a Europa deveria impor sua cultura aos demais povos do planeta, simplesmente porque tinham certeza de que era melhor. E, certamente, através das diversas formas de domínio, essa imagem se difundiu no mundo europeu, mas também nas Américas, onde esse preconceito foi imposto nos próprios americanos. Acaso esse preconceito ainda está vigente? É questão de dar um pulinho na Avenida Paulista e perguntar aos passeantes sobre o que opinam, como avaliam as qualidades do trabalho, ou princípios éticos e intelectuais numa comparação, digamos, entre o Brasil e a Alemanha. É bem provável que o preconceito ainda esteja muito difundido.

A viagem de Spix e Martius é extraordinária, fizeram um percurso de 14 mil quilômetros no Brasil. Como eram as condições práticas desse feito?
A realização de uma viagem científica das dimensões da que empreenderam Spix e Martius requer muito mais do que modernos instrumentos, competências no campo das ciências e do pensamento. Era preciso preparar as jornadas, contratar auxiliares para realizar o percurso. A viagem não podia ser feita sem contar com saberes locais, pessoas que conhecessem os caminhos e soubessem como lidar com as singularidades físicas e humanas de cada espaço. E, claro, os viajantes levavam uma carga enorme, entre vitualhas, instrumentos de trabalhos e as próprias coletas. A única forma de fazer isso em caminhos do interior era a lombo de mula, personagens difíceis de administrar e às vezes bastante voluntariosos. Para isso, os tropeiros eram fundamentais. Só eles eram capazes de administrar a vida desses animais em terras que, para os bávaros, eram totalmente desconhecidas. E quando o percurso se fazia por via fluvial, também se requeriam conhecimentos dos lugares: o ritmo das correntezas, os perigos que os rios traziam consigo, saber, entre outras coisas, quando e onde era possível navegar de noite e quando isso implicava risco de morte. Spix e Martius, como qualquer viajante europeu, jamais poderiam ter realizado uma viagem pelo interior do Brasil sem contar com a perícia dos habitantes de cada região.

No livro, vocês deixam claro que os conhecimentos médicos dos viajantes foram úteis ao longo da jornada. Este aspecto interferiu no roteiro?
Mais que escolher ou adaptar seu roteiro em função disso, essa foi uma ferramenta que lhes possibilitou, em muitas situações, poder seguir adiante. Os saberes médicos foram utilizados como moeda de troca por Spix e Martius. Com o correr do tempo, percebem que, às vezes, nem o dinheiro nem inclusive a força os auxiliaria a obter suprimentos indispensáveis para a sua viagem. Mas poder oferecer saúde em situações críticas a populações abandonadas de todo serviço público foi um recurso que com bastante frequência funcionou. E eles sabiam que esse era um problema não somente humano, de sofrimento, mas que também era percebido como um problema político. É por isso que eles mencionam esses serviços que prestavam a parcelas longínquas da população; falam disso em carta a dom João VI, e também ao seu próprio rei, Maximiliano José I.

Como os viajantes se interessaram por Minas Gerais e qual a importância da região para a expedição?

O projeto de ir a Minas Gerais ganhou corpo nas conversas que os dois acadêmicos bávaros mantiveram no Rio de Janeiro com (Wilhem Ludwing von) Eschwege (1777-1855) e, principalmente, com (Georg Heirich von) Langsdorff (1774-1852), que havia realizado uma incursão a Minas Gerais na companhia de (Auguste de) Saint-Hilaire (1779-1853). As informações dadas por esses interlocutores fizeram com que Spix e Martius percebessem que se tratava de um lugar cujo solo e paisagem eram totalmente distintos do que viam no Rio, além das questões mineralógicas, um dos focos de seus interesses, assim como a possibilidade de um contato direto com grupos indígenas. As incursões por Minas Gerais lhes proporcionaram contato com etnias agrupadas na Fazenda Guidoval, dirigida por Guido Marlier, e lhes possibilitou conhecer alguns costumes de sociedades, como Puri e Coroado, das quais registraram vocabulários e músicas, além de costumes. Porém, foi na Amazônia que os dois viajantes se aproximaram de muitos povos e nações indígenas. A comparação de diferentes sociedades foi o que deu a Martius uma compreensão mais ampla, iniciada durante a viagem e forjada ao longo dos anos. Ao acompanharmos os escritos de Martius, vimos que, apesar de ele ter mantido durante toda a sua vida valores e juízos etnocêntricos, sua compreensão sobre essas sociedades, em alguns aspectos, mudou ao longo das décadas.

Ao regressar à Baviera, Spix e Martius levaram “exemplares” indígenas. Como foi isso?
É evidente que, para a nossa sensibilidade, o ato de os expedicionários terem levado jovens indígenas como “peças vivas” se apresenta como um ato de tremenda crueldade, mas, infelizmente, naquela época, era uma atitude comum entre os cientistas viajantes: James Cook (inglês, 1728-1779), Wied-Neuwied (alemão, 1972-1867), e muitos outros fizeram o mesmo. Claro, o fato de que Spix e Martius levaram um menino e três meninas é ainda mais chocante. Tratava-se de seres humanos inermes que foram expostos ao exame público. Que foram tirados do seu mundo e introduzidos num clima e numa cultura que lhes eram absolutamente alheios. Essa experimentação com seres humanos reflete a categorização que os bávaros, como os demais europeus, tinham construído do gênero humano. Eles, europeus, consideravam-se o centro do universo, e sentiam-se autorizados a fazer esse tipo de experiências, com o propósito de incorporá-los ao mundo e à cultura europeia e, assim, mostrar aos demais povos o que, no juízo deles, apareceria como o bom caminho para um desenvolvimento.


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