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A subversão do noir

Escalpo, de Ronaldo Bressane, revisita o romance policial em forma de paródia ágil que reflete sobre a violência, o vazio do presente e a busca por identidade


postado em 15/11/2018 05:05

A crítica é unânime em afirmar que Dashiell Hammett e Raymond Chandler são os responsáveis por renovar a novela policial, elevando-a à categoria de arte – fato que teria forçado a crítica literária de suas respectivas épocas a levar o gênero um pouco mais a sério. Ao alterarem, sem reservas ou purismos, a fórmula repetitiva da estrutura básica da narrativa de detetives (já bem gasta pelo uso), Hammett e Chandler livraram suas personagens do destino de meros ventríloquos dessa mesma estrutura, dando-lhes complexidade humana e novos destinos.

Sem essa revolução formal e de conteúdo, Roberto Bolaño, por exemplo, não teria metido a mão na narrativa policial para retratar a lógica perversa das ditaduras latino-americanas. Compreender a opção de Bolaño (e de outros escritores latinos, como o cubano Leonardo Padura ou o uruguaio Mario Levrero) pelo romance policial é enxergar os elos que ligam sua narrativa à representação social do escritor e do intelectual, e à relação da literatura com o poder e a violência, além do aprimoramento do próprio gênero, criado por Edgar Allan Poe e seu detetive Auguste Dupin.

Essas questões também atravessam as páginas de Escalpo, mais recente romance do escritor paulistano Ronaldo Bressane. O livro debruça sobre as peripécias de Ian Negromonte, um conhecido quadrinista que, depois de um pé na bunda, uma acusação de plágio e um acidente durante as manifestações políticas que, em 2015, revelaram um país em convulsão, aceita o convite de um misterioso escritor chileno de novelas policiais (chamado Miguel Ángel Flores) para iniciar uma viagem pela América do Sul em busca dos filhos de Flores, supostamente desaparecidos no decorrer da ditadura de Pinochet, em 1973.

É que “a todo pé na bunda segue-se um pé na estrada”, conforme conclui Negromonte, na página 13. E em Escalpo, o que pesa é isso mesmo: a viagem, o movimento, a investigação, a casualidade dos encontros, na medida em que o que organiza de fato todo o caos e o acaso de seus personagens errantes, em constante trânsito, é justamente o relato investigativo que, estruturalmente, parodia o estilo noir de uma história de detetives. Em certa medida, trata-se de uma releitura do gênero policial, ainda que, ao mesmo tempo em que o homenageia, revela suas limitações e busca subvertê-lo. Desse pé na estrada, o autor embaralha as falas, as identidades, e a localização geográfica desses seres à deriva; até que, do Chile a Paraty, passando por São Paulo, o detetive Negromonte (ou Cisco Maioranos) empreende sua busca pelos desaparecidos desse grande e violento continente, da qual extrai relatórios cada vez mais cômicos e estranhos.

Um dos trunfos da escrita de Bressane é frustrar, de propósito, a expectativa do leitor típico das histórias detetivescas, ao passo que em seu desenvolvimento desconstrói as regras tradicionais do gênero, embora, a princípio, dê a entender que irá segui-las. A força da escrita de Bressane não está apenas na desenvoltura de suas vozes e referências, mas em lembranças que, intercaladas, misturam-se com a ação presente de modo natural, em uma velocidade que mistura tudo sem confundir nada: sexo, paisagens oníricas, leões-marinhos, e mais uma plêiade de personagens de uma realidade que surge sempre com ares de mistério, dando a impressão de que seu entendimento depende do esclarecimento da última página.

Esse esclarecimento chega inacabado (como tem que ser) e revela um continente marcado por desigualdades sociais e regimes de exceção, onde seus heróis (e anti-heróis) só encontram a salvação mediante o sexo, a fuga e as drogas, ainda que toda tentativa de escapar descambe para o mesmo ponto. A chegada à “idílica” cidade de Paraty encerra o road book (definido assim pelo próprio autor) e revela um paraíso com surto de dengue e dominado por traficantes, para além dos cliques dos turistas e dos outdoors das sofisticadas feiras literárias.

Em Escalpo, a violência é o vetor de tudo. O próprio título do livro aponta para um doloroso procedimento de tortura que acontecia nos centros de detenção dos anos de chumbo. Bressane consegue, a partir da tentativa de reconstrução de duas histórias (a de Miguel Ángel Flores e a da própria América Latina assolada pelos generais), entender nosso passado a partir de um presente esvaziado de sentido.

* Tadeu Sarmento é escritor e autor, entre outros, de E se Deus for um de nós? e Associação Robert Walser para sósias anônimos.

• ESCALPO
• De Ronaldo Bressane
• Reformatório
• 256 páginas
• R$ 40


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