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Memória: modo de usar


postado em 19/10/2018 07:00

Nem dicionário, nem enciclopédia, o primeiro volume do Léxico conceitual Brasil/Europa lança-se a uma tarefa tremenda, quase intimidadora: elegendo por pontos de partida termos altamente imantados, tais como patrimônio e memória, o livro se propõe a rever e revisar as reverberações deles na América e no Velho Continente, destacando os desvios e ressonâncias que adquirem em seus usos concretos. A diverso, porém, do mar calmo e arrumado das histórias lineares, o percurso aqui traçado se desdobra, antes, como um hábil jogo de carretel entre o longe e o perto.

Desta forma, os termos deste Léxico operam como um pequeno arsenal de eixos pivotantes, em torno dos quais se articulam as constelações de antônimos e sinônimos que cada ensaio convoca. Destacando, assim, a inevitável dimensão estratégica de cada emprego específico – resultado que casa, por sinal, muito bem com a ênfase sobre a débil força messiânica do-que-poderia-ter-sido –, é certo que isso tampouco depõe contra o alto potencial de abstração dessas palavras-coringa. Esse traço, aliás, é observado, com especial clareza, nas entradas que o livro dedica à questão da memória.

É o que faz, por exemplo, com que, uma vez destacados os jogos de força operando nos bastidores de cada monumento – o que estaria domesticado em dicionários-padrão como mera “representação do passado” – retorne ora encenado em forma de um ansioso cabo de guerra de apagamentos e acumulações, em que o que foi deletado/esquecido pode ser tão ou mais crucial do que o que se salvou. E mesmo o suposto lastro empírico da coisa celebrada dá a impressão de, claramente, perder primazia para a trama de nexos intersubjetivos que nela se coagulam, gerando intrigantes inversões de prioridade entre “ser sobre” e “ser para alguém”.

Ideias que talvez soem contraintuitivas demais se enunciadas a seco, o mínimo que se pode dizer, quanto mais a leitura avança, é que se trata de um problema fartamente sanado no livro pela alta relojoaria das sete contribuições. Todas são capazes de conciliar, com rara elegância, complexidade e didatismo, valendo como uma caixa de ferramentas multiuso no coração das trevas da theory.

No plano mais granular, porém, essa recusa em pactuar com o senso comum – patente nos argumentos sinuosos e intrincados que ditam o tom dos ensaios e convertem cada um deles em uma áspera terra de ninguém inter e transdisciplinar – dá aqui as mãos com uma série de clarões e clareiras, que trazem repentinamente o leitor para perto dos problemas, gerando uma sadia fecundação recíproca de exemplo e conceito.

RECONHECIMENTO Num elenco que cobre de Slavoj Zizek a Clara Nunes, de Aby Warburg a Sérgio Buarque de Holanda, com direito a pontas de Aleijadinho, Anselm Kiefer, Camões, entre outros, a leitura passa a se dar então ao feitio de uma gangorra contínua entre o desorientar-se e o reorientar-se, delineando trajetos nos quais, como nas melhores páginas de Proust, a impressão de ter perdido de vez o fio da meada pode ser apenas a antecâmera de um novo reconhecimento.

No atacado, por sinal, trata-se de uma aposta, decerto, que, não bastasse expandir, de modo vertiginoso, a profundidade temporal do texto, parece também se deliciar em forçar a audiência a brecar, aqui e ali, o fluxo da leitura para coçar a cabeça – que é bem o que parecer ocorrer, por exemplo, quando nos damos conta da primeva condição de metáfora náutica de um termo tão capital como sertão, de início empregado para se referir àquelas partes do mar que a vista não alcança. Ou ainda, quando no debate sobre o projeto hoje conhecido como “Patrimônio cultural de influência portuguesa” vem à tona toda a violência simbólica, pulsando sob e sobre o uso da palavra “origem” no título original.

IMPASSES O curioso, porém – se tivermos em mente, ainda, o inegável e problemático travo hierarquizante que o termo vicário comporta –, é que, longe de caminhar no sentido de uma solução de compromisso ideal, essa troca só tende a realçar o status de questão em aberto dos impasses aqui mapeados; característica que, seja ou não outro efeito espectral gerado pela Musa Mnemósine – bela e lapidarmente definida, a certa altura, como a capacidade de “ouvir o outro em si mesmo” – dá bem a medida da sutileza com que os ensaios vão abrindo picadas insólitas entre vivos e mortos, entre o próprio e o outro etc.

Trânsito a que tampouco é alheia também certa impressão de sobrecarga, não há dúvida de que, ao realçar o modo como os termos trocam de sinal quando pulam de um contexto a outro – funcionando ora como peneira, ora como escudo protetor – esses textos tendem, por vezes, a encarecer o efeito de dívida simbólica gerada por essas e outras apropriações indébitas, como é o caso dos usos/abusos da ideia de revolução na historiografia política – tanto brasileira quanto portuguesa. O que está, certamente, muito longe de resultar numa soma sem resto.

Afinal, se pensarmos que, no nervo dessa outra grande palavra flutuante que é a “Política”, encontra-se justo uma visceral insatisfação a respeito dos usos correntes do pronome “nós”, nada a espantar então que, alavancando as múltiplas apropriações a que tal pronome se presta, não esteja senão a tentativa de tapar o próprio buraco cavado por esse vazio constitutivo, cujo escopo presta-se, como se sabe, às mais drásticas expansões e contrações – sem que todavia jamais se possa saber onde o uso autorizado cede vez à gambiarra. Ou até que ponto uma exorbitância aberrante não pode se converter depois em gesto fundador.

GERINGONÇAS Coincidência ou não, num trajeto que, já no ensaio final sobre o patrimônio, tem o topete de conferir status teórico a troços, trecos e geringonças, difícil subestimar o efeito de arredondamento criado por este generoso “e assim por diante” em que o livro se converte, às voltas com um arco de histórias e problemas que parecem que nunca terminam de terminar.

Com guinadas que ora reviram subitamente a valência de termos como império, cultura e revolução, ora nos convocam a esgarçar e liminarizar o que antes se afigurava uma fronteira estanque, é quase como se, enfim, a boa e velha ideia do sertão roseano como lugar que “carece de fechos” tivesse encontrado uma tardia e inusitada duplicata na teia de remissões e extravios que esse Léxico despoleta, pari passu à insistência e rigor como contornos são nele esfumados e recompostos, página a página.

Num terreno onde a leitura é não raro descarrilada pelos efeitos de densidade que gera, forçando-nos a ter então que interromper o fluxo para absorver melhor a espessura de cada buraco negro, trata-se de um bloqueio, ao menos no nosso caso, que parece, felizmente, caminhar sempre lado a lado de uma revigorante intimação combativa, apta também a servir de passagem secreta a uma reconsideração radical da própria realidade, desvelada, portanto, menos como um dado pronto e acabado do que efeito agônico e provisório das pontes e cercas traçadas entre passado e presente. Em meio a essa grande e inóspita selva-selvagem que são hoje os estudos da memória – entendidos, sem dúvida alguma, como o lócus por excelência em que tais negociações se dão –, difícil pensar em cicerone mais hospitaleiro que esse pequeno volume, no qual a ideia do “ler levantando a cabeça”, tão cara a Barthes, parece finalmente adquirir a mesma consistência e insistência de um elusivo ritmo estrutural, sob o impacto das vastas tramas de ecos, espectros e ricochetes que esses belos ensaios deflagram.

Emílio Maciel é doutor em estudos literários pela UFMG, pós-doutor em literatura brasileira pela Sapienza Universidade de Roma, professor do Departamento de Letras da Ufop e coordenador do Setor de Estudos Literários da Ufop.


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