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A ressurreição segundo Zimler

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A simbologia em torno de temas bíblicos vem rendendo obras de fôlego na pintura, no cinema, na música, no teatro e na literatura. Essa interface vamos encontrar nas películas de Pasolini, Zeffirelli, Scorcese e Godard, nas composições de Bach, Händel e Liszt e na obra de Saramago, para citar alguns exemplos clássicos.

Na bibliografia contemporânea, Richard Zimler, americano naturalizado português e que vive no Porto há três décadas, é um dos nomes mais expressivos de uma literatura que percorre não só a história do cristianismo, como outros territórios em que realiza uma peculiar cartografia dos universos místicos. Com cerca de 15 livros publicados, o autor é um versátil explorador desses mundos repletos de mistério e indagações metafísicas, como em O último cabalista de Lisboa, Os anagramas de Varsóvia, A sétima porta, Goa ou o guardião da aurora e O evangelho segundo Lázaro, obra que acaba de ser publicada no Brasil.

Nesse romance, a dicção erudita não traz névoa à compreensão de assunto tão complexo e profundo, senão aguça o interesse do leitor por escandir um reino às vezes tão ilegível. Onde o sagrado e o profano se imbricam, o cunho de investigação religiosa se mescla a um rigoroso processo de reflexão histórico-filosófica sobre uma das mais enigmáticas e impactantes passagens da vida de Jesus Cristo e seus seguidores.

Exímio estilista, Zimler funde história, memória e invenção e catapulta-nos a um labirinto de percepções que resulta numa obra aberta a vários sentidos, numa escritura prospectiva e depurada, que sintetiza seu profundo sentido de pesquisa e análise o rastreamento do viés espiritual, no liame da verdade histórica.

O evangelho segundo Lázaro enfeixa uma teia fragmentária e calcada em planos narrativos, cronológicos e psicológicos alternados que se relacionam simbioticamente, em que muitas vezes o autor recorre ao monólogo interior. Ao deslindar sua proposta na abertura do livro, propõe um rigoroso desvendamento do fenômeno ressurrecional a partir de um pergaminho que enuncia a empreitada perscrutadora e transcendente do narrador. O destinatário é seu neto Yaphiel, em Alexandria, a quem será confiada toda sua investigação, dentro do primado judaico que envolve o fato, abstraindo-se o autor do dogma fechado de apresentar um Jesus apenas como descendência unigênita.

Eis a transfiguração da entidade humana e histórica que antecede ou ultrapassa a condição de profecia, apresentando Jesus e Lázaro em seu dia a dia; do peregrino que carrega, além dos mistérios, suas preocupações existenciais, políticas, sociais e econômicas como qualquer humano; do discípulo Lázaro, na esteira das mesmas inquietações, ambos enfrentando a alçada e o acicate do poder de Roma que, ao final, vai impingir a crueldade da perseguição e pena capital da crucificação.

Numa sequência narrativa densa e elegantemente elaborada, como a desnudar palimpsestos, Richard Zimler descreve momentos cruciais sobre a relação de Lázaro com Jesus, Maria e as irmãs, o milagre da ressurreição e a emergência da fé numa época dominada por um império corrosivo. Visita o autor em clave ficcional, mas sem fugir ao contexto histórico, uma jornada espiritual que mudou os rumos da civilização. E estabelece o diálogo com um passado que muito tem a oferecer luzes ao conturbado mundo de hoje, quando a afronta dos poderosos, a perseguição às minorias, a intolerância política e religiosa dos estados totalitários nada divergem daqueles tempos sombrios em que Lázaro e Jesus viveram, lutaram e sacrificaram suas vidas em busca da verdade.

Richard Zimler, ao lançar um novo olhar sobre um dos mistérios do evangelho, realiza um verdadeiro auto de fé e ressignifica a dimensão humana, histórica e espiritual de Jesus e Lázaro, emoldurado por uma linguagem sofisticada, densamente filosófica e carregada de força metafórica e poética, oferecendo ao leitor uma história de profundo humanismo.

Escritor, autor de Eles não moram mais aqui (Prêmio Jabuti 2016), vive em Lisboa.

O EVANGELHO SEGUNDO LÁZARO 
De Richard Zimler  
Globo Livros  
418 páginas  
R$ 59,90.