Hugo Castro
Médico, mestre em Poder Legislativo, doutorando em bioética pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (Portugal) e responsável técnico pela AC Peritos
Da sabedoria popular para os Tribunais. Em recente julgado de 11/5/2021 (Recurso Especial 1.790.014-SP), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento quanto ao limite e alcance da responsabilidade civil do médico-cirurgião por erro relacionado à assistência anestésica.
Em outubro de 2000, uma jovem de 24 anos contratou e realizou cirurgia estética de redução de mamas, junto a determinado cirurgião plástico. A cirurgia transcorreu sem complicações, porém, na sala de recuperação anestésica ela apresentou quadro de instabilidade respiratória e, como apurado pela perícia judicial, foi vítima de negligência no atendimento prestado pelo anestesista.
No caso, o anestesista somente compareceu à sala de recuperação anestésica 2 horas e 45 minutos após o desencadeamento do quadro, e retardou a intubação orotraqueal por 1 hora e 15 minutos, tempo determinante para a ocorrência de lesões neurológicas. Por conta da inadequação de conduta, a jovem ficou em estado vegetativo, mantendo somente as funções fisiológicas essenciais, como respiração e circulação.
A controvérsia diz respeito à responsabilidade civil do cirurgião-chefe por erro médico do anestesista, ocorrido durante o pós-operatório, na fase de recuperação anestésica. A família ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais apenas contra o cirurgião. O pedido de indenização foi julgado improcedente em primeiro grau, mas o Tribunal de Justiça de SP reformou a sentença e concluiu que o cirurgião-chefe contratado, por ter escolhido o anestesista como integrante da sua equipe cirúrgica, teria responsabilidade pelo erro médico.
Em grau de recurso, o caso foi parar no STJ para análise. O tribunal entendeu que o médico-cirurgião, ainda que seja o chefe da equipe, não pode ser responsabilizado solidariamente por erro médico cometido exclusivamente pelo anestesista. Na medicina atual, é frequente a participação de vários profissionais na mesma cirurgia. Nesse contexto, a jurisprudência se inclina no sentido de que só cabe a responsabilização solidária e objetiva do cirurgião-chefe da equipe médica quando o causador do dano for profissional que atue sob predominante subordinação àquele.
Entre médicos de especialidades distintas, não há que se falar em subordinação. O Código de Ética Médica, inclusive, prevê como princípio fundamental da profissão a liberdade de atuação. “O médico não pode, em nenhuma circunstância ou sob nenhum pretexto, renunciar à sua liberdade profissional, nem permitir quaisquer restrições ou imposições que possam prejudicar a eficiência e a correção de seu trabalho.”
O médico anestesista, por exemplo, em razão de sua especialização, desempenha funções específicas durante a cirurgia, agindo com acentuada autonomia, segundo técnicas médico-científicas que domina e suas convicções e decisões pessoais, motivo pelo qual assume responsabilidades próprias, segregadas, dentro da equipe médica.
Desse modo, se o dano ao paciente advém, comprovadamente, de ato praticado pelo anestesista no exercício de seu mister, este deve responder individualmente pelo evento. A Resolução 2.174/2017 do Conselho Federal de Medicina, ao disciplinar a prática do ato anestésico, determina que o anestesista deve acompanhar e zelar pelo paciente durante a recuperação da anestesia administrada, o que não ocorreu no caso, configurando grave inadequação de conduta.