Jornal Estado de Minas

Nós, mineiros, e a grotesca pantomima

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Sandra Starling
Advogada, professora aposentada (UFMG)
 
Parecia um presságio. A Assembleia Nacional Constituinte estava reunida no prédio da Cadeia Velha, no Rio de Janeiro. Para relator, os constituintes escolheram Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, que, juntamente com seus irmãos, José Bonifácio, o Patriarca, e Martim Francisco, brilhava no cenário político nacional.  No início de setembro daquele ano de 1823, o deputado Andrada havia apresentado um projeto de Constituição para o Brasil, consagrando uma monarquia constitucional, de forte acento liberal, no qual era marcante a preocupação com a contenção dos poderes de Dom Pedro.




 
 
A temperatura esquentou quando o Plenário, no dia 10 de novembro, passou a discutir o tema da garantia fundamental de liberdade de imprensa. Muita agitação, tensão e tumulto levaram à suspensão dos trabalhos. Retomada a sessão no dia seguinte, o relator propôs que a Assembleia se declarasse em sessão permanente “enquanto durarem as inquietações na cidade e que se solicitem ao governo os motivos dos estranhos movimentos militares que perturbam a tranquilidade da capital". A proposição foi aprovada. Na sequência, Andrada convocou os populares que assistiam à sessão das galerias a que descessem e se somassem aos parlamentares em vigília no Plenário. 

O fim daquele dia passaria à história como a “Noite da agonia”. Na tarde de 12 de novembro o prédio da Cadeia Velha já estava cercado por militares, a mando de Dom Pedro, para que se cumprisse sua ordem de dissolução da Assembleia. Determinou-se a evacuação do recinto. Na saída, 14 deputados foram imediatamente presos, entre eles, o mencionado Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, que, ainda, teria tido tempo de retirar o chapéu, se curvar a um dos canhões ali postados e, em seguida, dito: “Saúdo Sua Majestade!”.

Tristes Trópicos! Começava ali, entre nós, passados pouco mais de seis meses da Proclamação da Independência, a triste sina de subjugação da política à força das armas; a opressão de brasileiros por outros brasileiros, armados. Os pernambucanos, inconformados com a intervenção manu militari de Dom Pedro, proclamaram, logo depois, a “Confederação do Equador”. As tropas imperiais foram mobilizadas para esmagar os revoltosos. Muito sangue de gente brasileira foi derramado. Frei Caneca, líder daquele movimento libertário, foi fuzilado.





Enquanto não superarmos esse defeito de nascença, não seremos um país melhor, povoado por uma gente feliz. Por mais que o general Augusto Heleno insista em dizer que o Brasil “tem tudo para dar certo”, não será impondo a ordem, pelo estamento armado, que alcançaremos o progresso. A ordem nos tem sido imposta pelo poder das armas desde aquele longínquo 12 de novembro de 1823 e o progresso, desde então, atravancado, tem se tornado, nesses últimos tempos de forte tutela militar, retrocesso. Em tudo: economia em frangalhos, aumento da desigualdade social, a volta da fome, desemprego em massa, pobreza crescente, caos na saúde, desprezo pela educação, destruição da cultura, negligência na proteção ao meio ambiente, crise hídrica, violência generalizada, atritos internacionais... A lista não tem fim!

A pantomima é grotesca. E de nada adianta dizer que a exibição de força na Praça dos Três Poderes, em ameaça àqueles poderes que não têm armas, é um mero exercício de rotina dos fuzileiros navais. Quando era deputada federal, por Minas Gerais, com frequência percorria, por carro, o trecho da BR-040 entre Belo Horizonte e Brasília. Cruzei algumas vezes com o comboio dos fuzileiros navais deslocando-se do Rio de Janeiro para o Planalto Central ou retornando ao I Distrito Naval. Nunca estiveram acompanhados por tropas do Exército e da Aeronáutica; nunca desfilaram pela Esplanada dos Ministérios. A agregação das forças de terra e de ar aos fuzileiros navais, em Brasília, à frente do prédio do Congresso Nacional, no dia em que a Câmara dos Deputados decidiu o destino da maluquice das eleições no papel significa, sim, “estranhos movimentos militares que perturbam a tranquilidade da capital”.

Mas, nós, mineiros, aprendemos com o “Senador do Povo”, Teófilo Otoni, o glorioso “luzia” da Revolução Liberal de 1842: aspirante a oficial da Marinha, desde 1826, na cerimônia de sua formatura como guarda-marinha - tendo sido o aluno colocado em primeiro lugar em sua turma, no curso preparatório - o bravo filho da Vila do Príncipe do Serro Frio causou espanto ao se recusar a, como mandava o protocolo, oscular o anel imperial de Dom Pedro.  

Deixou-nos a lição: nunca se deve beijar a mão de um autocrata.  

audima