Jornal Estado de Minas

Ciência brasileira perde US$ 3,40 por vacina a cada ano

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Soraya Smaili
Professora da Escola Paulista de Medicina-Unifesp, ex-reitora da Unifesp (2013-2021) e coordenadora do SOU_CIÊNCIA 

Pedro Arantes
Professor da Escola de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da Unifesp, ex-pró-reitor de Planejamento (2017-2021) e pesquisador do SOU_CIÊNCIA


É inimaginável que, diante de uma pandemia que já levou mais de 530 mil vidas, nós brasileiros sejamos contemplados com a notícia de que as poucas vacinas compradas, com sofrimento e muita oposição, podem ter sido objeto de superfaturamento, envolvendo questões éticas, morais e até criminais. Esse cenário desolador pode nos ajudar a lembrar o quanto a ciência brasileira perdeu de recursos em investimento desde 2016. Paralelamente, somos obrigados a tratar da notícia de que há tentativas de lucro, mesmo diante da perda de tantas vidas.




 
Recentemente, na CPI da COVID, falou-se do desejo de membros do governo de lucrarem 1 dólar por cada dose de vacina comprada na tal negociação. Está gravado na cabeça dos brasileiros a pergunta: “Quanto vale nossa vida?”. Podemos   usar essa nova forma de ‘monetização da vida’ para um outro cálculo, tão ou mais grave.
 
As perdas de investimento na ciência brasileira foram brutais, muito acima do 1 dólar por dose. Para se ter uma ideia sobre essa cifra, tomando como média o padrão de investimento de 2014 e 2015, em valores liquidados, isto é, efetivamente gastos, e corrigidos pela inflação (IPCA, para janeiro de 2021), foi possível avaliar a queda dos recursos de 2016 até 2020. O ano de 2016 é um marco da virada no padrão de investimento em razão de três fatores: impeachment da presidente Dilma Rousseff, emenda do Teto dos Gastos (EC 95/2016) e extinção do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.
 
Nos anos de 2014 e 2015, o Brasil investia, em média, R$ 14,2 bilhões ao ano em pesquisa, ciência, tecnologia e inovação. Nesse valor estão somados os recursos utilizados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que apoia a pesquisa de ponta e oferece bolsas em todos os níveis de pesquisa; Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que aporta recursos na Finep (empresa pública de fomento à inovação e pesquisa); e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que coordena o sistema de pós-graduação no Brasil e oferece bolsas de pesquisa.




 
A partir de 2016, esses recursos despencaram para R$ 8,5 bilhões e depois para R$ 5,2 bilhões em 2020, direcionados ao CNPq, FNDCT e Capes. Somando a perda nos últimos cinco anos (2016 a 2020), foram R$ 38 bilhões a menos para pesquisa, ciência, tecnologia e inovação no Brasil, o que representa uma perda anual de R$ 7,45 bilhões, se comparado ao patamar 2014/2015.
 
Para visualizar o tamanho do impacto que essa queda representa, basta realizar uma comparação com as doses de vacina. Para vacinar toda a população brasileira, dos idosos aos bebês, com duas doses, são necessários 440 milhões de aplicações. Imaginando que pudessem ser aplicadas em um ano, cada dose de vacina simbolizaria a perda de R$ 17 da ciência brasileira por ano, ou US$ 3,40 para adotarmos a mesma monetização do esquema de corrupção recém-revelado na compra das vacinas. Esse é o mesmo preço de custo da vacina AstraZeneca, por exemplo.
 
Se a indignação nacional está voltada para o 1 dólar por dose, vamos somar a isso os 3,4 dólares por dose perdidos pela ciência nacional e que poderiam estar salvando mais vidas? Se o Brasil não tivesse perdido em cinco anos R$ 38 bilhões em pesquisa e ciência, certamente estaríamos em melhores condições para produzir nossa própria vacina e avançar ainda mais em pesquisas clínicas e de tratamento. Tais cortes, vale dizer, têm impactos diversos: sucateamento dos laboratórios, perda de pesquisas, desincentivo a novas pesquisas, fuga de cérebros, perda de autonomia e soberania na pesquisa nacional, entre outros.




 
Os países que saíram na frente na corrida da vacina investem muito mais em ciência que o Brasil. Segundo dados da OCDE e MCTIC, em 2017, o Brasil investiu 1,27% do PIB em pesquisa & desenvolvimento (somando setores públicos e privados), enquanto países que lideraram no combate e prevenção à COVID-19 investiram 4,55%, como Israel, e 4,55%, como a Coreia do Sul, que, inclusive, tem PIB comparável ao do Brasil. Estados Unidos e China, com PIBs astronômicos, investem 2,78% e 2,12%, respectivamente. Isso significa que temos muito que avançar.
 
O FNDCT é a maior fonte de recursos para CT&I no Brasil. Em 2014, foram investidos R$ 3,9 bilhões e, em 2020, em plena pandemia, apenas R$ 790 milhões. Depois de longa e ampla mobilização das universidades, cientistas e suas entidades, o FNDCT foi descontingenciado pelo Congresso Nacional, ao sancionar a Lei Complementar 177. Contudo, o governo federal segue bloqueando os recursos, de R$ 5 bilhões, que estão no Fundo e são utilizados pelo Ministério da Economia para outros propósitos. Trata-se de recursos fundamentais a serem aplicados urgentemente. Não se pode mais esperar. Os recursos da ciência devem ir para a ciência. A ciência, afinal, salva vidas.

audima