Além do luto pela morte de mais de meio milhão de brasileiros, a pandemia deixa um rastro de sequelas sociais, econômicas e o aumento da violência doméstica. Em meio à maior crise sanitária do século, em 2020, 1.338 mulheres foram executadas pelo ex ou atual companheiro. O maior aumento de casos foi constatado nas regiões Norte (37%) e Centro-Oeste (14%). Na capital da República, nos primeiros seis meses deste ano, ocorreram 16 feminicídios. Embora a punição para esse crime hediondo seja mais severa, ela não inibe a agressão letal, motivada por uma questão de gênero – a vítima é morta só por ser mulher.
O ato extremo contra as mulheres é precedido de uma série de outras expressões de violência, como ofensa verbal (18,6% ou 13 milhões), agressões físicas (6,3% ou 4,3 milhões), ofensa ou tentativa forçada de relação sexual (5,4% ou 3,7 milhões), ameaça com faca ou arma de fogo (3,1% ou 2,1 milhões), espancamento ou tentativa de estrangulamento (2,4% ou 1,6 milhão), revela o estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com base em dados coletados nos estados. Os números, apesar de chocantes, não correspondem à realidade. O estudo mostra que 45% das vítimas não recorreram a nenhum serviço oferecido pelo poder público, o que indica alto percentual de subnotificação em todo o país.
A falta de autonomia, seja por perda do emprego, seja pela impossibilidade de trabalhar e ter renda, é o fator que mais pesa na suposta inércia de pouco mais de 25% das vítimas; 22% buscaram socorro na família; 12% denunciaram as agressões à Delegacia da Mulher; 5,6% não acreditam nas instituições; e apenas 2% pediram ajuda por meio do Disque 180 (Central de Atendimento à Mulher).
Em todos os casos, o patriarcalismo e o machismo são os gatilhos para as tragédias que marcam o universo feminino. Esse comportamento é reforçado, historicamente, pela depreciação do papel da mulher na sociedade – uma deformidade relacionada à falta de uma educação que valorize a equidade de gênero. “É uma cultura que dá alta legitimidade aos homens para domesticar as mulheres e moldá-las de acordo com seus padrões e referências, e, se necessário, matá-las”, afirma Télia Negrão, jornalista, mestre em ciência política e integrante da Rede de Saúde das Mulheres Latino-americanas e do Caribe/RSMLAC.
É indispensável o agravamento da punição aos agressores a partir da revisão da Lei Maria da Penha, mas insuficiente para conter a violência contra as mulheres. Ao poder público, inclusive às forças de segurança e ao Judiciário, cabe promover campanhas mais enfáticas sobre os direitos das mulheres e apontar para os homens danos causados pelo machismo. A mudança passa necessariamente pela educação, para desconstruir a ideia de que os homens são seres superiores e, portanto, responsáveis por ditar o destino das mulheres, coisificadas pelo universo másculo. Tanto nos ambientes doméstico e escolar quanto no espaço profissional, no qual a mulher é comumente desvalorizada, o respeito entre os gêneros deve preponderar. Onde faltam educação e respeito, a incivilidade e a barbárie são dominantes.