(none) || (none)
UAI

Continue lendo os seus conteúdos favoritos.

Assine o Estado de Minas.

price

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e segurança do Google para fazer a assinatura.

Assine agora o Estado de Minas por R$ 9,90/mês. ASSINE AGORA >>

Publicidade

Estado de Minas

País do futuro!


postado em 06/07/2020 04:00


Otacílio Lage
Jornalista

há 79 anos, o Brasil tinha cerca de 40 milhões de habitantes, 56% deles analfabetos. Quase 70% viviam na roça, produzindo para sua subsistência. Eram comuns famílias com 10 ou mais filhos, talvez para "garantir" que pelo menos parte da prole sobrevivesse às doenças endêmicas de então (tuberculose, tifo, febre amarela, sarampo, varíola, crupe, paludismo, desnutrição e afins) – de cada mil nascidos, 147 (média) não chegavam a um ano de vida. A faixa etária de até 14 anos detinha 43% da população, com um terço das crianças de sete a 14 anos fora da escola (quem entrava desistia logo, pois logo se via "derrotado"). A falta de oportunidades para os negros, então, era ofensiva.

Foi esse Brasil que o escritor austríaco de origem judaica Stefan Zweig encontrou quando chegou ao país fugindo do regime nazista e, em tom ufanista, lançou o livro Brasil, país do futuro, por certo acreditando que aquele cenário iria mudar tão logo a Segunda Guerra Mundial terminasse, o que só ocorreria em 1945 – ele nem vivo mais estava. Potencial para isso o país tinha o bastante, mas o subdesenvolvimento era espantoso. Naquela época, até mesmo nas maiores cidades, água encanada era regalo de poucos – tratada nem pensar –, o que contribuía, e muito, para a baixa expectativa de vida (50 anos). A obra de Zweig encerrava ideias de um empolgado imigrante ou realmente poderia inflar uma corrente de fé pelo progresso do Brasil?

Hoje, oito décadas depois, o país tem 211 milhões de habitantes e ainda convive com um sem-número de mazelas crônicas. No saneamento básico, avançou razoavelmente nos últimos 40 anos, porém, ainda há 35 milhões de brasileiros (17%) sem água tratada em casa e 52% não dispõem de coleta de esgoto. Vale lembrar que esses serviços estão assegurados pela Constituição, sistematicamente atropelada por sucessivos governos. Na educação, os ensinos básico, médio e superior auferiram melhorias, principalmente graças à interiorização, mas o país ainda está distante do ideal – 12 milhões de brasileiros (8%) são analfabetos. Estudantes pobres pouco podem competir com os de classe média. Quando vemos a Universidade de São Paulo (USP) colocada no 116º lugar no ranking mundial das melhores universidades, constatamos que há algo de errado com o Brasil nesse setor.

Nas décadas seguintes, houve muitos avanços: criação da Petrobras, construção de grandes hidrelétricas e implantação de indústrias pontuais, como siderúrgicas, montadoras de automóveis e de produção naval. Contudo, formação de mão de obra qualificada para o estrato mais carente da população segue sendo o grande desafio. Tanto isso é verdade que entre os sete milhões de trabalhadores em serviços gerais e domésticos existentes hoje no país há predominância de pessoas afrodescendentes e com baixa escolaridade. Nas comunicações, o país deu saltos importantes nos grandes centros, mas segue claudicante nos cafundós de seu imenso território de 8,5 milhões de quilômetros quadrados. Na área viária, o descaso segue obstruindo o progresso desejável: a malha rodoviária está estrangulada e malconservada, e a ferroviária – encolhida com a erradicação, em 1967, dos trilhos de bitola estreita – carece de urgente expansão devido às dimensões continentais do país. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, foi uma conquista ímpar para a universalização do atendimento. Hoje – mesmo "satanizado" –, o que seria da maioria da população sem essa instituição?

Voltando ao austríaco – há dois filmes baseados em seus textos: Carta de uma desconhecida (1948) e Grande Hotel Budapeste (2014) –, seu deslumbramento pelas paisagens, pela fertilidade das terras e a cordialidade do povo acabou ficando a reboque da perversa realidade que envolvia o país. Nas últimas oito décadas, o "país do futuro" seguiu sua sina: decola aqui, derrapa ali, com crises políticas e econômicas cíclicas. Quase 80 anos depois do livro de Zweig, o Brasil tem ainda 17% da população sem água tratada (35 milhões) e 52% dela (102 milhões) órfã de coleta de esgoto. O país cresceu cinco vezes em número de habitantes, mas lhe faltou empenho público para a expansão do saneamento básico (afinal, muitos governantes detestam tocar obras no subsolo). A expectativa de vida atinge 76 anos e a mortalidade infantil antes de um ano de vida é de 13 por mil nascidas. Quanto à violência, dos 30 mil jovens vítimas de homicídios por ano, 77% são negros.

Zweig dizia no livro: "Quem visita o Brasil não gosta de deixá-lo. Nós, europeus, que experimentamos na nossa própria sorte as terríveis consequências dessa avidez e ganância de poder" – referindo-se, obviamente, à guerra da qual fugira –, "sentimos que essa forma mais suave e mais serena da vida que temos aqui é um benefício e uma felicidade". Ledo engano dele. Não só no Brasil, mas em todo o mundo, poder e ganância andam atrelados, "casados" com alianças em todos os dedos.

Passado todo esse tempo, o Brasil ainda engatinha para ser realmente uma nação consolidada como desenvolvida econômica, política e socialmente. Doenças dadas como extintas no país, caso do sarampo, ou que estavam controladas, como a tuberculose e a sífilis, voltam com tudo ao nosso dia a dia. Há um forte desalento ante o menosprezo dos governantes com a pesquisa científica. A busca por uma vacina para o coronavírus é a maior meta agora, tanto do governo quanto de cientistas brasileiros.

O que Zweig viu no interior do país de 1941, a pobreza sistêmica, segue desafiante. Tinha com ele que o futuro de um país só seria alcançado corretamente se fosse sem guerras, com as pessoas vivendo irmanadas, pacificamente, não obstante todas as diferenças de raças, classe, cor, crenças e opiniões. A priori, estava certo, mas a realidade aqui e mundo afora é bem outra. Quinze meses após ter desembarcado no Rio de Janeiro e lançado o livro, Zweig, morando em Petrópolis com a segunda mulher, Charlotte, capitulou. Talvez sufocado pela solidão do exílio e a decepção ante as críticas que recebera por sua aparente simpatia ao então ditador Getúlio Vargas, ele se suicidou ao lado da companheira, tomando veneno, em 22 de fevereiro de 1942, aos 61 anos. Certo é que o Brasil, o "país do futuro" imaginado pelo escritor austríaco, segue sem data para acontecer.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)