Jornal Estado de Minas

Vozes e profecias

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

Vozes e profecias contracenam nos cenários que marcam circunstâncias da sociedade contemporânea. As vozes são muitas. Não poderia ser diferente, pois a contemporaneidade também se caracteriza pelo direito irrestrito de se expressar – uma necessidade e também um dever. Os diálogos são tecidos com os elos do que se diz. E as vozes são muitas, ante a autonomia, a necessidade e o dever de se expressar. Dessa realidade surgem desafios para enunciar falas coerentes, sensíveis às muitas vozes que precisam se fazer ouvir. A escuta se torna, pois, uma exigência. Condição indispensável para o diálogo. Há, assim, a dicotomia entre os direitos de poder, de dever dizer, e a exigência de também saber escutar.  Sem escuta, não há diálogo e, consequentemente, relações ficam prejudicadas, crescem radicalismos, polarizações, preconceitos e juízos inadequados.



Interessante é recordar o dito popular “quem diz o que quer ouve o que não quer”. Sublinha-se, pois, o aspecto de que a liberdade de dizer não dispensa o compromisso ético com a verdade. Não é tarefa fácil. O ato de falar depende de determinada interpretação, pois há certa parcialidade que se evidencia com um olhar hermenêutico. São vozes e vozes que buscam se fundamentar na verdade, ao menos na verdade de seu território. A partir dessa premissa, quando se observam diferentes enunciados na contemporaneidade, constata-se que está em curso a consolidação de uma babel, acirrada pelas estreitezas de diferentes interpretações dos que pensam possuir a verdade, quando, em vez disso, falam a partir de interesses dos lugares que ocupam.


Nessa babel de vozes está o enfraquecimento da capacidade profética do ser humano, seja pelo silêncio permissivo perante as injustiças ou pela incapacidade de escutar os diferentes clamores. As profecias gradativamente perdem espaço para as conivências e o ser humano torna-se incapaz de cultivar o sentimento de indignação frente a situações que precisam ser mudadas. Trata-se de um sinal da crise do compromisso comunitário. O que passa a valer hegemonicamente é o que está garantido no horizonte sedutor do consumismo, advindo da lógica do mercantilismo e da sedução de um bem viver egoísta, mesquinho. Essas lógicas e dinâmicas são tão traiçoeiras e cegam a tal ponto que não se conseguem revestir discursos com a coerência de um testemunho revelado na própria conduta. Isso faz lembrar Jesus numa invectiva forte, contundente e atual, a respeito de seus conterrâneos: eles falam, mas não praticam o que pregam.

Sem profecias, o mundo se perde. A voz profética incomoda por tocar o âmago de feridas, com a assertividade sustentada pela indignação, aspecto que não pode faltar, sob pena de alimentar a indiferença e incapacitar para aquele olhar que gera a compaixão e disposição de cuidar. Por isso mesmo, as vozes múltiplas do tempo atual, quando é necessário construir novos entendimentos e formatar novos sistemas, são desafiadas a retomar e fazer renascer as profecias. Existem medos, desconfianças, titubeios, rigidez, disputas cegas contracenando com a demanda reprimida de vozes proféticas capazes de abrir caminhos, com lucidez, no horizonte dos anseios da humanidade.



Os cidadãos estão desafiados a unir suas vozes, nos seus diferentes tons, por uma sinfonia humanística que emoldure a caminhada da sociedade. Importante é deixar-se interpelar, esperançosamente, pelos sonhos do papa Francisco na sua recente Exortação Pós-Sinodal “Querida Amazônia”, nos largos horizontes dos sonhos social, cultural, ecológico e eclesial. O primeiro passo da profecia será sempre reconhecer a própria condição de aprendiz, aberto a remodelações, correções e a novas práticas, particularmente pelo convencimento de que a hora exige um falar com força para desencadear transformações.

Assim, a Igreja Católica, intrinsecamente fundamentada na profecia, pelas exigências irrenunciáveis do evangelho de Jesus, vive agora interpelante desafio, com sua voz própria – sem empréstimo de outras vozes, mas contracenando  para que haja harmonia: contribuir para que os muitos “dizeres” constituam um coro profético, na contramão clara e corajosa de desmandos do conservadorismo político, de atentados insanos contra a democracia, de sandices contra a Constituição, cultivando indignação diante de qualquer ameaça às pessoas e aos direitos. Dessa forma, ajudar na consolidação de uma sociedade cada vez mais democrática, balizada em marcos civilizatórios que possibilitem a superação de atrasos e de descompassos produzidos por lógicas perversas, alicerçadas na idolatria do dinheiro. Continuem as vozes, renasçam as profecias.
Nessa babel de