Jornal Estado de Minas

Prisões medievais no Brasil: retrato da negligência estatal


Marcelo Aith
Especialista em direito criminal e direito público e professor de processo penal da Escola Paulista de Direito

A situação degradante dos presos no Brasil não é novidade, mas uma doença não diagnosticada, originária de uma bactéria igualmente des- conhecida, está deformando o corpo de detentos da Penitenciária de Boa Vista, em Roraima, e retificando a fata de dignidade humana no sistema carcerário. A doença é provocada por germe poderosíssimo, que está comendo a pele viva dos internos, deixando partes do corpo em decomposição. Especula-se que a doença tenha origem na grande concentração de sarna, sífilis e bicho- geográfico, causando grandes feridas, principalmente, nas mãos e pernas dos detentos. É tão grave, e até então sem cura, que já levou para o Hospital Geral de Roraima 24 detentos, a maioria em estado grave.



Vale frisar que o Brasil, há tempos, vem sofrendo com a negligência estatal relativamente ao sistema carcerário. Temos uma população de cerca de 800 mil presos definitivos e provisórios vivendo, em sua grande maioria, em presídios superlotados, em condições subumanas. Existe um paradigma criado no subconsciente das pessoas de que o condenado ou o preso provisório, por serem responsáveis pelos atos que cometeram, devem receber do Estado um castigo severo e desumano. Na verdade, os reeducandos, efetivamente, sofrem uma dupla sanção: uma decorrente da pena privativa de liberdade imposta pelo Estado-juiz, outra as condições subumanas que vivem ao ingressar em uma penitenciária. Os detentos, além de ser meros números de registro, são tratados como verdadeiros animais, independentemente do crime que cometeram.

A realidade brasileira é que os presos não têm condições dignas sequer para dormir e se alimentar adequadamente. A alimentação precária é fornecida, como regra, por empresas terceirizadas que buscam, exclusivamente, o lucro, oferecendo produtos de baixíssima qualidade, havendo relatos, inclusive, da presença de cacos de vidro, fezes de animais, espermas etc., ou seja, uma visceral e aberrante afronta à dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos constitucionais do Estado democrático de direito.

O Brasil retomou a perspectiva bélica de segurança pública, em que o encarcerado é um inimigo do Estado e da sociedade. Os abusos de poder cometidos dentro do sistema penitenciário, fruto dessa política canhestra, que ‘imagina’ que punir reconstrói o ser humano ‘desvirtuado’, são constantes e não possibilitam a ressocialização do detento. Conforme asseveram Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista, “as agências penitenciárias são as receptoras finais do processo seletivo da criminalização secundária”. E essas agências penitenciárias, atreladas à Secretaria de Segurança Pública, pela gritante negligência estatal, são absolutamente frágeis, o que leva, invariavelmente, os agentes pe- nitenciários -- o Estado naquele momento -- a agir privilegiando apenas e tão somente a disciplina, resultando, muitas vezes, em imposições de castigos desumanos aos detentos.



Esse cenário dantesco e kafkiano está em evidente choque com o princípio da dignidade humana, um dos fundamentos mais caros do Estado democrático de direito, que supostamente vigora no Brasil. Desarte, por ser fundamento do Estado de democrático de direito, torna-se o elemento re- ferencial para a interpretação e aplicação das normas jurídicas. O ser humano não pode ser tratado como simples objeto, como ocorre, infelizmente, na grande maioria das penitenciárias brasileiras.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, em sua obra O direito penal e a dignidade humana – A questão criminal: discurso tradicional, define com enorme felicidade o que vem a ser dignidade da pessoa humana: “Entenda-se como dignidade da pessoa humana o conjunto de atributos pessoais de natureza moral, intelectual, física, material que dão a cada homem a consciência de suas necessidades, de suas aspirações, de seu valor, e o tornam merecedor de respeito e acatamento pe- rante o corpo social”.

O princípio da dignidade da pessoa humana, consoante preleciona a doutrina constitucionalista, é dividido em dois aspectos: objetivo e subjetivo. O objetivo está intimamente relacionado ao mínimo existencial, ou seja, atrelado às suas necessidades vitais básicas, como direito a moradia, alimentação, educação higiene etc., previstos no artigo 7º, IV , da Constituição da República. Por outro lado, o aspecto subjetivo do princípio da dignidade da pessoa humana se relaciona com o respeito e a autoestima inerentes ao ser humano que vive em comunidade, cujo Estado tem por missão torná-los incólumes (doce ilusão).



Com efeito, o sistema penitenciário brasileiro é absolutamente caótico, com cerca de 60% a mais de presos do que a capacidade permite. Qual o resultado desse aterrorizante cenário? Prisões superlotadas, condições subumanas para os encarcerados, descontrole disciplinar, constantes rebeliões com mortes, sem contar que os presídios são do- minados por facções criminosas que ditam as regras internamente.

Há possibilidade, nessa situação catastrófica em que vivem os encarcerados, de ser cumprida uma das funções da pena, qual seja, a ressocialização do reeducando? Presos que recebem esse tratamento voltam em que condições para a sociedade?

O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento básico de um Estado democrático de direito, em que o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais é essencial e inalienável. Desrespeitá-lo é rasgar o primado insculpido no artigo 1º, III, da Constituição da República.

No Brasil estamos a vivenciar a banalização das denúncias e das prisões cautelares, fruto da retomada da perspectiva bélica de segurança pública, em que o acusado e o detento são considerados inimigos do Estado, muitas vezes alimentados pela mídia, que condena pessoas antes mesmo de se iniciar o processo. O sistema penitenciário teria por finalidade precípua organizar os serviços destinados à execução penal, tendo como objetivo a regene- ração dos condenados, readaptando-os à vida social. Entretanto, o que ocorre é diametralmente o oposto: os presos sofrem severos castigos, são tratados feito animais abandonados.



A humanização da própria execução penal, com a ressocialização do preso, é o nirvana para toda a sociedade. Para alcançar esse ‘sonho’ há de existir uma substancial mudança de paradigma, fazendo com que os presos sejam respeitados como pessoas humanas, que tenham atividades nos presídios, diminuindo a corrupção dos funcionários que permitem a entrada de drogas e celulares, fornecendo um sistema competente de saúde para essas pessoas, entre outras mudanças necessárias. Não pode ser normal morrer atrás das grades por descaso do Estado.