Jornal Estado de Minas

DISCURSO DE ÓDIO

'Calvo do Campari': saiba o que é red pill

 

“Não tem como explicar a Matrix, você tem que vê-la”, diz Morpheus (Laurence Fishburne) a Neo (Keanu Reeves) em ‘Matrix’, antes de lhe dar duas pílulas: uma azul e uma vermelha. Se ele escolher a primeira, vai continuar vivendo na nossa realidade. Mas, caso tome a vermelha, ele descobrirá a verdade sobre o mundo e como as pessoas são escravas do sistema. Acontece que as pílulas ganharam um novo significado em grupos masculinistas.





O filme é uma referência ao mito da caverna, de Platão. Na analogia, a  pílula azul seria uma forma de ver o mundo em negação, sendo uma crítica a discursos negacionistas e ao medo da mudança, por exemplo. Mas no universo masculinista, as red pills (pílulas vermelhas) mostram aos homens a “verdade”: que eles são as vítimas da sociedade e as feministas ocultariam a realidade.


Ou seja, ao tomarem a pílula vermelha e se tornarem red pills, eles acreditam que são capazes de ver as mulheres como vilãs e que precisam combatê-las para conquistar seu espaço de valor. E não para por aí. Muitas vezes, esses homens intitulam mulheres como “vadias”, “interesseiras” ou “rodadas” e usam de discurso de ódio e preconceito para desmerecer e combater a participação feminina na sociedade.

As red pills e a direita

As pílulas vermelhas e azuis vêm sendo utilizadas por membros da direita e da extrema-direita em todo o mundo há alguns anos. É uma analogia em que a verdade seria aquela vista apenas pela direita. Em 2020, o empresário Elon Musk postou em seu twitter: “Tomem a pílula vermelha”. A filha do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, respondeu que havia tomado. 





Com o passar do tempo, os masculinistas se apropriaram do termo. No vocabulário masculinista, os "red pills" são os homens que se opõem ao "sistema que favorece as mulheres", ou seja, que alcançaram um conhecimento privilegiado e não acreditam nas relações com mulheres. 


Enquanto isso, os "blue pills" seriam aqueles que não viram a verdade. Assim, eles continuariam vivendo em ilusão e, portanto, seriam usados pelas mulheres. Há ainda uma categoria que não existe no filme: os "black pills", homens que concordam com red pills e acham que já não podem mudar nada no "sistema", se isolando.


Outra terminologia utilizada por grupos red pills é ‘sigma’, que também é uma outra denominação que eles se colocaram. O sigma seria um contraponto ao ‘macho alfa’. Enquanto esse é viril, musculoso e conquista milhares de mulheres, aquele se apresenta como líder nato, mas introspectivo, supostamente adorado por mulheres e diz se comportar como lobos solitários. 





Esses homens seriam representados por alguns personagens, como  Patrick Bateman (Christian Bale), em "Psicopata Americano", que leva vida dupla como assassino nas madrugadas de Nova York; Tommy Shelby (Cillian Murphy), da série "Peaky Blinders", que é um líder da máfia frio e calculista, mas faz de tudo para defender a família; e K (Ryan Gosling), de "Blade Runner 2049", um blade runner que caça replicantes foragidos para a polícia de Los Angeles.

Comunidades on-line

Uma pesquisa do iDrama Lab, que é um grupo de pesquisa internacional sobre danos online e segurança cibernética, há um movimento do comportamento dos homens em comunidades virtuais. No começo dos anos 2000, eles se engajavam em grupos sobre sedução e conquista de poder. Mas, nos últimos anos, há um crescimento dos fóruns sobre incels (celibatários involuntários), sigmas, MGTOW (homens que seguem o próprio caminho) e os red pills.


Mas o movimento vai além dos grupos privados. Existem diversos influenciadores digitais, vídeos, podcasts, livros e até cursos sobre o assunto - e que encontram grande audiência. Para se ter uma ideia, segundo reportagem da Folha, a hashtag “sigma” acumula mais de 44 bilhões de visualizações no TikTok. São vídeos que apresentam regras para os homens sigma, como focar em si mesmo, respeitar os pais e investir apenas “unicórnio”, que são as mulheres perfeitas.





O conteúdo traz homens demonstrando força ou agindo com violência contra outros homens. Mas também exalta situações de humilhações e brutalidade contra mulheres. Há também conteúdo que  incentiva o desenvolvimento pessoal, o que envolve isolamento, abdicação de prazeres e acumulação de riqueza. 


Já quando o assunto é red pill, esses criadores vivem "desvendando" a real ação das mulheres, como é o caso do Calvo do Campari, que afirma que o simples ato de uma garota lhe oferecer uma cerveja era um teste para ver até onde ele defende seus ideais. Para eles, as mulheres se relacionam apenas por dinheiro. Também há uma crítica a mulheres que traem os companheiros, que tenham vários parceiros ou que busquem um novo relacionamento depois de ter filhos.

Thago Schutz, o Calvo do Campari, ficou conhecido por levar o discurso red pill. Ele é autor de livros e faz mentorias sobre o assunto (foto: Reprodução / Instagram)

Depois de ter viralizado com um vídeo em que ele rejeitava tomar uma cerveja, Thiago Schutz, o Calvo do Campari, tem mais de 300 mil seguidores só no Instagram. Ele é autor do livro “Pílulas de realidade”, “Red pill 2.0” e "O livro das red flags - os comportamentos femininos que podem arruinar a vida do homem moderno”. Ele também participa de eventos, como o TedHomem, e de mentorias.  Por fim, é apresentador do podcast “Pink & Pill”, em que também fala sobre masculidade.





Em seu site, Thiago ressalta que “recebeu inúmeros elogios e comentários positivos por sua desenvoltura, lucidez e didática ao explicar sobre a red pill e relações entre os sexos em diversos podcasts, cujos cortes ultrapassam 20 milhões de visualizações”. Em um de seus conteúdos, Thiago diz que não vê motivos para namorar uma mulher com filhos. Em outro, que mulheres acima de 26 anos perderam o valor. 


Outro caso é o de Taylor Simão, que tem mais de 1 milhão de seguidores no TikTok. Além de ensinar os homens a “abrir os olhos”, ele faz vídeos dando dicas de como “pegar mulher”, dando conselhos como exigir IMC e avaliações físicas das mulheres antes de se relacionar. Taylor também fala que algumas mulheres devem ser descartadas, como as que possuem estrias ou que já têm filhos. Para ele, os homens devem ser provedores da família, não devendo a mulher trabalhar, sendo sua função única servir o marido. Ele tem um curso na Hotmart chamado “Destravando os alfas”. 

Discurso de ódio

O grande problema dos red pills é que a superioridade masculina e o ódio às mulheres faz vítimas. É o caso da atriz e roteirista Livia La Gatto. Ela compartilhou as mensagens contendo ameaças que recebeu de Thiago Schutz, depois que ela fez um vídeo ironizando as falas misóginas do coach. Nas imagens, é possível ver que o homem pediu para que ela tirasse seu conteúdo do ar e, caso não o fizesse, poderia escolher “processo ou bala”.





Lívia registrou a ameaça em um boletim de ocorrência e abriu um processo contra ele. "Vamos silenciar esse discurso porque ele não cabe mais. Estamos em 2023, com recorde de feminicídio, e esse tipo de discurso só alimenta essa violência de masculinidades frágeis, homens que não tiveram saúde emocional. Não podemos ter medo de falar 'não'", declarou Lívia em sua participação no programa 'Encontro'.


A cantora e influenciadora Bruna Volpi também compartilhou diversas ameaças que recebeu de homens red pill. “Essa aí merece bala”, diz uma das mensagens que ela recebeu. Bruna viralizou depois de fazer um exposed do Calvo do Campari e de defender Lívia La Gatto. Ela também recebeu mensagens de Thiago e disse que vai abrir um processo contra o coach. “O Thiago é uma figurinha carimbada nos meus vídeos de conteúdo feminista. Porque tem muita gente que fala absurdos, mas com tanta frequência, ele é o campeão”, contou em entrevista ao Fantástico.


Vanessa de Oliveira é outra criadora de conteúdo que combate o movimento red pill. Em uma busca pelo seu nome nas redes sociais, é possível encontrar mensagens com ofensas e ameaças a ela. “Ela é mãe solteira, velha e rodada. Ela fez filmes pornô, foi garota de programa e hoje ensina as mulheres a dar golpe nos homens”, diz um usuário do Twitter. 





Em outra publicação, sua foto ganha chifres e roupas da Malévola. “Mãe solteira deseja que o Ministério Público intervenha nos perfis que propagam conteúdos red pill e black pill”, diz a imagem do post.

Vocabulário

Como toda ‘tribo’, os red pills também desenvolveram uma linguagem própria para se identificar. A mais comum é, na verdade, um conjunto de emojis: %uD83D%uDDFF%uD83C%uDF77. Ou seja, uma estátua moai e uma taça de vinho. A bebida é uma referência à ideia de aproveitar os prazeres da vida sozinhos; e a estátua representa o guerreiro, o poder e a masculinidade. 


Em um canal do YouTube chamado “'Atitude alfa”, que tem mais de 100 mil inscritos, há um compilado dos termos red pill. Essas expressões ajudam a entender o tipo de pensamento que o grupo compartilha. Confira algumas denominações: