Jornal Estado de Minas

EMOÇÃO

Fé, cultura e devoção tomam as ruas de Belém, no Pará, no Círio de Nazaré

Gustavo Werneck*


Belém (PA) -
Maior procissão católica do mundo, com a presença estimada para este ano de 3 milhões de pessoas, o Círio de Nazaré transforma as ruas de Belém, neste domingo (9/10), em monumental espaço de fé, cultura, tradições e louvores à padroeira do Pará e Rainha da Amazônia, Nossa Senhora de Nazaré. O cortejo com a berlinda que traz a imagem começou às 7h na Catedral de Nazaré e tem previsão de terminar no início da tarde, no Santuário Basílica Nossa Senhora de Nazaré.



Após dois anos de interrupção devido à pandemia, a celebração de 2022 com o tema "Maria mãe e mestra" retorna às vias públicas da capital paraense arrebanhando moradores de todo o Norte do país e de outros estados, de todas as gerações e camadas sociais. Desde a madrugada, milhares de peregrinos se dirigiam à Catedral de Nazaré, no Centro Histórico, de onde partiu a procissão.

Impossível não se emocionar ao ver passar a procissão do Círio ao longo de 3,6 quilômetros. E emoção pode ser uma palavra "mínima" para homens e mulheres que seguram a corda em torno da padroeira. O gesto dos "promesseiros" pode expressar gratidão ou pedido de graças, busca de cura para o corpo e para a alma, coração aberto para a esperança e pedido de bênçãos particulares ou coletivas.

São muitas as cenas de demonstração de fé nas ruas de Belém. Pessoas pagando promessas se movimentando de joelhos no asfalto, com amigos e parentes estendendo papelão para não causar muitas lesões; grupos carregando rosários gigantescos; pais e filhos descalços, seguindo a procissão, crianças vestidas de anjo, enquanto os pais levam velas gigantescas. Momentos tão fortes que comovem e ficam na memória de quem vê.



Fiéis pagam promessas se movimentando de joelhos no asfalto (foto: Gustavo Werneck/EM/D.A Press)

"Estou agradecendo pela saúde da minha mãe", disse um homem, com as mãos e pés enfaixados, seguindo a procissão de joelhos.

Com livros sobre a cabeça, Rosilda Gomes Vilhena, de 52 anos, casada, agradeceu por ter passado no vestibular de serviço social na Universidade Federal do Pará. "Estou há 26 anos sem estudar, e agora muito feliz por ter retornado à sala de aula. Sou a primeira da minha comunidade quilombola a ingressar nese curso", disse Rosilda, que tem três filhas, uma delas adotada.

Com livros sobre a cabeça, Rosilda Gomes Vilhena agradeceu por ter passado no vestibular (foto: Gustavo Werneck/EM/D.A Press)

Busca de educação e pedidos de saúde e de moradia são os temas mas frequentes nas palavras dos promesseiros.



Carregando uma cruz da qual nem quis saber o peso, Bruno Teixeira seguiu a procissão movido pela força da fé (foto: Gustavo Werneck/EM/D.A Press)
Carregando uma cruz da qual nem quis saber o peso, o professor e estudante de medicina Bruno Teixeira, de 31, seguiu a procissão movido pela força da fé e estímulo do agradecimento. "Perdi dois amigos para a COVID-19, mas outras pessoas queridas se salvaram. Minha mãe está bem, consegui resolver questões pessoais, pela intercessão de Nossa Senhora de Nazaré", afirmou Bruno.

Ao lado do marido, da filha e da neta, Maria do Socorro Garcia pediu a intercessão de Nossa Senhora de Nazaré para reforma da casa, que estava o telhado danificado pelas chuvas. "Finalmente conseguimos depois de mais de 10 anos de luta. Nossa Senhora nos socorreu", contou a mulher com alegria e carregado uma casinha feita de isopor reconstituindo a parte recuperada.

Se uns caminham, outros se movimentam de outra forma. A bailarina Isabelle Maria Garcia da Silva, de 17 anos, seguiu a procissão fazendo o que mais gosta: dançando, de sapatilha. Entre pontas e pliês, contou que conseguiu ingressar na Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará. "É um vestibular muito concorrido, então pedi ajuda a Nossa Senhora de Nazaré e ela atendeu", revelou a jovem.





Ajudado por um amigo, Ruberval Farias levou um barco pelas graças alcançadas (foto: Gustavo Werneck/EM/D.A Press)
 

Ajudado por um amigo, Ruberval Farias, de 59, levou um barco pelas graças alcançadas. "Tive sérios problemas de saúde e me salvei. Todo ano, trago uma embarcação em sinal de agradecimento."

FORÇA E FÉ


Mineiro de Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte e há 12 anos no Pará, o arcebispo metropolitano de Belém, dom Alberto Taveira conta que o Círio começou a partir da experiência do caboclo Plácido, que levou para casa uma imagem encontrada à margem de um Igarapé. "Só depois, a partir da casa, surgiu uma capela, depois uma igreja, paróquia, basílica e santuário. Mas tudo começou pequeno, na dimensão da família."

Destacando a devoção mariana na cultura paraense e amazônica, dom Alberto explica que Nossa Senhora de Nazaré é a força catalisadora que reúne multidões.

Assim falou o arcebispo: "A explicação do fenômeno do Círio demandará outros mais duzentos anos e trinta anos. Este é o Círio de número 230. Na atualidade, somos forçados a ser rápidos e objetivos na vida, pois temos que ganhá-la com nosso trabalho, numa corrida contra o tempo. No Círio, as coisas não funcionam assim. No Círio, trata-se apenas de se deixar levar por uma onda de gente e de sentimentos, com as leis da corda, comandada por Nossa Senhora. No Círio não se reclama do tempo ou do cansaço, o Círio se vive. E aí as pessoas se sentem acolhidas e amadas, misteriosamente aconchegadas ao colo da Mãe. Por isso sempre dizemos que o Círio de Nazaré não se descreve com palavras, mas se vive".



Dom Alberto Taveira explicou que a primeira lição do Círio está na presença de Maria nas casas: "A presença das imagens de Nossa Senhora de Nazaré em todas as famílias pode ser símbolo do acolhimento oferecido à Virgem Maria, transformando nossas casas em Casas de Maria". Na multidão, ele disse ficar impressionado "com os olhares das pessoas" e também com os promesseiros "que se multiplicam por milhões, escondendo e revelando o mistério humano, envolvendo a todos, sem exceção".

RIQUEZA DA AMAZÔNIA

Considerada a maior concentração católica no mundo, o Círio de Nazaré, realizado há mais de 200 anos, se traduz por uma monumental manifestação de fé a Nossa Senhora de Nazaré, no segundo domingo de outubro. A grandiosidade mereceu alguns títulos que enchem de orgulho os paraenses: em 2013, a celebração foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e também como Patrimônio Cultural do Brasil, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

"É uma força cultural muito intensa, até ultrapassa as fronteiras da religião", disse o psicólogo e sexólogo Robson Morrison ao lado da mulher, Silvia Mosquim, que trabalha na área de RH. Morador do Bairro Carmo, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, o casal se disse apaixonado pela Região Norte do Brasil. "É nossa primeira vez no Círio. Impressiona a mobilização de todos, independentemente da crença, para fazer esta festa", afirmou Robson.



A história do Círio de Nazaré começou em 1700 com o achado da imagem de Nossa Senhora de Nazaré, pelo caboclo Plácido José de Souza, às margens de um riacho localizado perto de onde se ergue a Basílica Santuário Nossa Senhora de Nazaré. Em 1793, com o crescimento da devoção, ocorreu a primeira procissão dedicada à padroeira dos paraenses.

Para se ter uma ideia da gigantesca celebração, que dura 15 dias, há 13 procissões, tanto em terra como nos rios. Os cortejos começaram em 5 de outubro e incluem as festividades de trasladação, romaria rodoviária, romaria fluvial e Círio das crianças, além de missas, vigílias de oração, arraial de Nazaré, Círio Musical, a descida da imagem do Achado do Glória para o altar da basílica santuário, no qual fica durante dos 15 dias de festa, para visitação.

Neste sábado (8/10), houve a romaria fluvial, com saída do distrito de Icoaraci, numa distância correspondente a 18,5 quilômetros e duração de duas horas. Mas na manhã deste domingo houve festa no céu, com a Esquadrilha da Fumaça presentando suas homenagens à Rainha da Amazônia.




HISTÓRIA DA CORDA


A corda que acompanha o cortejo do Círio e cerca a berlinda, o andor fechado onde vai a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, passou a fazer parte do Círio em 1885, quando uma enchente atingiu a orla, em Belém, no momento da procissão. Com a força das águas, a berlinda ficou atolada e os cavalos não conseguiram puxá-la. Os animais, então, foram desatrelados e um comerciante emprestou uma corda para que os fiéis puxassem a berlinda. A partir daí, a corda passou a fazer parte do cortejo, tornando-se um ícone usado na Trasladação e no Círio.

Confeccionada em sisal torcido, a corda tem 400 metros de comprimento (para cada uma das romarias) e duas polegadas de diâmetro. Até 2003, o formato da corda era de "U" com as duas extremidades atreladas à berlinda. A partir de 2004, por motivos de segurança, a corda ganhou formato linear dividida em cinco estações confeccionadas em duralumínio que ajudam a dar tração à corda e ritmo às romarias.

(*) O repórter viajou a convite do Instituto Cultural Vale.