Jornal Estado de Minas

O GRITO QUE LIBEROU O BRASIL

Bicentenário da Independência: testemunhos da história


 
Ouro Preto – A Casa de Gonzaga, sobrado localizado diante da Igreja São Francisco de Assis, joia barroca do Centro Histórico de Vila Rica, ex-capital de Minas, guarda um acervo fundamental para maior entendimento do bicentenário da Independência e de como os mineiros souberam da separação do Brasil de Portugal. Reunindo milhares de documentos – datados desde meados do século 18 à atualidade –, o Arquivo Histórico do Município de Ouro Preto, vinculado à Secretaria Municipal de Cultura e Patrimônio, tem movimento crescente de interessados em pesquisas e consultas, diz a servidora Helenice Afonso de Oliveira, que destaca a importância do acervo documental para a história e a vida das pessoas.





Entre as obras à disposição para pesquisa na Casa de Gonzaga estão cinco volumes encadernados contendo fac-símiles de documentos referentes à Independência e à aclamação e coroação de Dom Pedro I como imperador do Brasil, nos meses seguintes ao “brado retumbante” de 7 de setembro de 1822. O conjunto de manuscritos foi enviado a Ouro Preto em 1922, pela Câmara do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, durante as celebrações do centenário da Independência. “Pelos documentos que temos, pode-se ver que houve muito mais festa do que hoje”, conta Helenice, formada em história pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
  • 200 anos da Independência: de Vila Rica ao Ipiranga
Em tempos de grandes dificuldades de comunicação no início do século 19, é comum aos leigos ficar imaginando como os brasileiros souberam do Grito do Ipiranga, ocorrido em São Paulo. A resposta, pelo menos para Minas Gerais, está em ofício datado de 19 de outubro de 1822 e enviado pela Câmara da então Vila Rica (atual Ouro Preto) à Câmara do Rio de Janeiro. Nele, a presidência da Casa mineira acusa o recebimento da correspondência enviada em 17 de setembro de 1822 sobre a separação do Brasil de Portugal.

Comunicado da Independência enviado às Câmaras

Na verdade, comunicado sobre a Independência do Brasil foi enviado às 16 câmaras que então existiam em Minas. Estão lá (na grafia antiga): Villa Rica (hoje Ouro Preto), Villa do Príncipe (Serro), Barbacena, Queluz (Conselheiro Lafaiete), São José d’El Rey (Tiradentes), Villa Nova da Rainha (Caeté), São João d’El Rey, São Carlos de Jacuhy (Jacuí), Santa Maria de Baependi (Baependi), Campanha da Princeza (Campanha), Pitanguy (Pitangui), São Bento do Tamanduá (Itapecerica), Marianna (Mariana, então a única cidade), Villa Real do Sabará (Sabará), Bom Sucesso das Minas Novas (Minas Novas) e Paracatú do Príncipe (Paracatu).





No caso de Ouro Preto, o documento original enviado às câmaras de Minas, vindo do Rio de Janeiro, foi transferido em 1901 para Belo Horizonte, quatro anos depois da mudança da capital de Minas. Segundo informações do Arquivo Histórico do Município de Ouro Preto, o manuscrito faz parte do acervo reunido por José Pedro Xavier da Veiga quando da criação do Arquivo Público Mineiro (APM) em Ouro Preto, em 1895 (hoje em funcionamento na Avenida João Pinheiro, no Circuito Liberdade, em BH).

Ao tomar conhecimento da novidade, as câmaras se mobilizaram. Um exemplo foi na Villa Nova da Rainha, hoje Caeté, onde houve sessão especial na Câmara “congratulando-se com a Independência do Brasil”. O documento da reunião, realizada em 12 de outubro de 1822, contém 889 assinaturas, conforme o manuscrito que se encontra no Arquivo Público Mineiro (APM), em Belo Horizonte.

Ecos da separação

O fato é que, apesar de o príncipe regente Dom Pedro I ter declarado “Independência ou morte” em 7 de setembro de 1822 (uma data que ainda causa dúvida a muitos historiadores), em termos efetivos as palavras custaram a ecoar Brasil afora. E nem todos aceitavam a separação, conforme explica a professora de história Andréa Lisly Gonçalves, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).





“A Independência é um processo que não pode ser simplificado e reduzido ao 7 de Setembro. A adesão de Minas, por exemplo, não foi imediata. Havia aqui uma Junta Governativa que se opunha ao Rio de Janeiro, reivindicando maior autonomia. Dom Pedro I precisou ir a Ouro Preto (em abril daquele ano), para pacificar a situação, selando, ao longo da viagem, o apoio das vilas, às vezes com trocas de benesses”, conta a professora.

Para iluminar mais o assunto, Andréa Lisly Gonçalves revela que alguns autores, entre eles Caio Prado Júnior (1907-1990), escreveram que, até 1824 e 1825, algumas localidades no Brasil ainda não sabiam da separação de Portugal. “Em 1933, Caio Prado Júnior registrou que a Independência só se consolida, mesmo, a partir das regências.”

Vale destacar que o Período Regencial ocorreu entre o Primeiro e o Segundo Reinado, indo de 1831 a 1840 e iniciado após o imperador Dom Pedro I abdicar do trono em favor de seu filho, Dom Pedro II (1825-1891). Foi encerrado em 1840 com a coroação do novo imperador do Brasil, então com 15 anos de idade.





Com os olhos sempre atentos ao tempo, ao espaço e à efervescência da época, é possível entender melhor os fatos. Três meses antes de viajar a Minas, o príncipe regente vive um dia decisivo na sua trajetória e na história do Brasil. Em 9 de janeiro de 1822, contrariando as ordens de Lisboa que pede sua volta a Portugal, ele diz ao povo, no Rio de Janeiro, que ficará no Brasil, no episódio que se tornou famoso como o Dia do Fico. Em um tempo em que crescia entre os brasileiros o desejo de independência, a permanência do príncipe regente mostrava que ele estava ao lado do povo.

Nesse clima de ebulição política, tem papel preponderante o paulista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), chamado Patriarca da Independênci”, que auxilia no governo e na resistência às determinações da metrópole.
 

 

A unidade luso-brasileira

Que o Brasil era a parte mais importante do império português não havia dúvida – “Portugal sem o Brasil era coisa nenhuma, como se dizia na época”, destaca a professora Andréa Lisly Gonçalves, da Ufop. Tanto que em 1796 havia um projeto de Dom Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812, diplomata e político português) para criação do império luso-brasileiro, o que significaria eliminar o caráter de colônia do país e estimular o progresso em algumas províncias brasileiras, em benefício da unidade entre Portugal e Brasil.





Em 1820, com a Revolução do Porto, em Portugal, já existe uma mudança de cenário, com os ventos liberais soprando forte e sinalizando o fim do Absolutismo na Península Ibérica. “Naquele momento, há uma visão de nação portuguesa, sem oposição entre Brasil e Portugal, como a gente costuma aprender ou entender. Há uma ideia de unidade entre os portugueses da América e portugueses europeus, que se reúnem para criar uma Constituição comum, luso-brasileira – desde 1815, a ex-colônia já havia sido alçada ao status de Reino Unido a Portugal.

Deputados brasileiros foram a Lisboa com o objetivo de atuar na elaboração, em assembleia, de uma Constituição para a nação portuguesa e estabelecer uma monarquia constitucional que mantivesse a unidade entre Brasil e Portugal. Havia insegurança e desconfiança por parte dos parlamentares progressistas, que inclusive questionavam se apoiar a Independência do Brasil, cuja movimentação estava em curso no Rio de Janeiro, seria apoiar um regime absolutista, que não garantisse um governo constitucional. “Falavam até em uma recolonização de Portugal em relação ao Brasil, o que era, como se diz hoje, fake news”, compara Andréa Lisly Gonçalves.