Jornal Estado de Minas

A DOR DO LUTO

Rede de apoio ajuda famílias enlutadas pela COVID-19 e outras perdas

Há 22 anos, um acontecimento mudou a vida de Gláucia Rezende Tavares, de 66 anos, e Eduardo Carlos Tavares, de 72. Casados há décadas, eles tinham uma filha, que morreu em um acidente de carro em 1998. A dor foi transformada e o luto ressignificado, com a criação de uma rede de apoio para pais enlutados. 
 
A ‘ordem natural’ é os filhos enterrarem os pais, mas Eduardo discorda: “Não existe isso, essa ordem” ele diz. Quando sua filha morreu, o médico e sua esposa psicóloga tentaram encontrar um grupo de apoio, para compartilharem a dor de perdê-la. Entretanto não tiveram sucesso nas pesquisas. 




 
“Até mesmo porque, não existe um nome para isso. Filhos que perdem os pais são órfãos. E os pais que perdem filhos? São o que?” questiona Eduardo. Sem encontrar um grupo existente, o casal decidiu montar a sua própria rede de apoio. Na primeira reunião foram amigos e familiares e, aos poucos, outras pessoas apareceram com vontade de compartilhar suas dores.
 
No início, era um grupo pequeno e se chamava ‘API’ (Apoio a Perdas Irreparáveis), mas as reuniões foram ganhando grandes adeptos, com pessoas de todo país indicando e assim se transformou em uma rede. Atualmente a API conta com mais de sete mil famílias participantes e reuniões em diversas partes do Brasil e, até, fora dele.
 
O conceito de "perdas Irreparáveis" foi sendo transformado a medida que o trabalho crescia, já que uma das ideias centrais do projeto é reconfigurar o luto para algo que deve ser sentido sem sofrimento. Eduardo conta que “está de luto até hoje” pela filha. Mas o que ele sente é uma saudade boa, com memórias dos momentos que passaram juntos.




 
Partindo da ideia de reconstrução do luto, o nome foi mudado para (Ir) Reparáveis, pois é possível ressignificar a dor de uma forma positiva. Segundo Eduardo, “Em vez de superar o luto, é possível elaborar o luto”. Glaucia também acredita nesse conceito e completa que “A ideia inicial do luto ter um tempo para acabar e depois não existir mais, é mentira. Ausência não é falta, ela é presente”. 
 
A psicóloga gosta de brincar com as palavras de início ‘re’ e segundo ela, no luto os ‘res’ são importantes e presentes. “De modo geral, as pessoas chegam muito abatidas nas reuniões e dizem que acabou para sempre. Mas a dor, que é enorme, pode ser reparada e transformada”, diz Glaucia.
 
As reuniões aconteciam presencialmente antes da pandemia e sempre tinham pessoas novas para participar, por isso o ‘cronograma’ começa com as apresentações dos novatos e suas respectivas histórias, caso queiram compartilhar. O casal reforça que nenhuma atitude é obrigada, todos tem o direito de escolher. Após esse início, a conversa flui normalmente, mas sempre voltada para a troca de experiências.




 
De acordo com Glaucia, a rede não é uma terapia, apesar de ser um trabalho terapêutico e coordenado por psicólogos, e também, não tem cunho religioso ou de doutrinação. Pessoas de todas as religiões podem participar e são respeitadas, não há nenhuma distinção, pois é um grupo para compartilhar a dor da perda de um ente querido.
 
Eduardo lembra que a maioria dos novos membros chegam se sentindo perdidos e questionando o motivo daquela situação. Na maioria das vezes algum antigo participante passou por algo similar e consegue, por meio de sua experiência, acolher a fala do novato. Além disso, todos os participantes fazem uma escuta sem julgamentos e acabam por entender a necessidade da fala (ou não), do choro e demais reações que possam aparecer, uma vez que todos perderam alguém que ainda amam. 
 
A presença de um ‘amor eterno’ também é um ponto de vista do grupo. Não é porque uma pessoa morreu, ela deve ser superada e esquecida. Eduardo, inclusive, diz lembrar da sua filha por diversas vezes e que "alguém só morre, quando a última pessoa que lembra dela, morre também".




 
Para o casal, existem formas distintas de lidar com o luto e não há uma receita a ser seguida. Alguns se apegam ao trabalho, religião, descobrem um novo hobby, dentre outros. Mas o importante é fazer aquilo que for menos doloroso. O luto deve ser vivido e não tem uma data para expirar, “A dor existe e nunca vai acabar, o que existe é uma dor sem sofrimento” diz Eduardo.

Pandemia

A pandemia também mudou a rotina dos encontros da API. As reuniões presenciais, migraram para as salas online e possibilitaram que membros de outras localidades participassem do momento. O pico de mortes foi um choque para todos, e a falta do velório para encerrar o ciclo de vida foi muito sentida pelos enlutados. 
 
A psicóloga Glaucia, diz que “a COVID-19 trouxe uma ideia que todos nós estamos abalados emocionalmente, isso requer um ajuste e adaptação à condição nova. Ficar na lamúria não garante nada e os velórios tradicionais não são a única opção”, ela diz e completa que “é muito importante a rede neste momento. Estar com pessoas, mesmo que virtualmente faz bem. As pessoas se despediram com dos entes queridos de uma forma diferente”.




 
Glaucia lembra que a primeira participante do grupo que sofreu com as mudanças da pandemia foi uma antiga amiga do casal, que inclusive, tinha perdido duas filhas antes deles. “Ela perdeu a mãe em outro estado e por causa da COVID, não pode fazer um velório, foi algo atípico. Em função disso, ela pediu que parte da cerimônia fosse gravada, para ver futuramente. Para ela, foi a maneira de lidar com o luto”, diz a psicóloga. 
 
Ela acredita que muitas pessoas possam acreditar que algumas formas de lidar são tétricas ou ‘estranhas’, mas garante que cada um tem sua maneira e todas devem ser respeitadas. A morte é um assunto tabu, entretanto Glaucia diz que: “Tudo aquilo que nasce, necessariamente, vai morrer e ao perder, temos o luto. Não só de morte, mas também de crenças, ideias e projetos”.
 
Para participar do grupo, os interessados podem acessar o site da API, passar o número de contato e receberão, através dele, o link com um convite para participar da reunião no dia marcado. 




 
Eduardo reforça que as reuniões querem, também, desconstruir a ideia que o velório é necessário para elaborar o luto. É importante, mas não é essencial. E com as restrições impostas pela pandemia, é ainda mais fundamental ressignificar a elaboração e vivência do luto. 
 
Rede API está presente em Belo Horizonte (matriz), Sete Lagoas, Vitória (ES), Montes Claros, Brasília, Domingos Martins (ES), Goiânia, Ribeirão das Neves e Nova York. A expansão se deu pelo interesse dos próprios frequentadores, que indicavam cada vez mais pessoas para participar das reuniões. Mas voltando para suas cidades, tinham vontade de levar o projeto para a comunidade local e, segundo Glaucia, todos os coordenadores são psicólogos. 

Reuniões internacionais 

A psicóloga Larissa Nogueira Campos, de 36 anos, mora fora do Brasil desde 2006 e passou 13 anos nos Estados Unidos. Apesar desse histórico, ela não conheceu a rede por meio da unidade em Nova York, mas pretende estar à frente da coordenação na Alemanha, país onde mora atualmente.




 
Segundo Larissa, ela conheceu o namorado alemão enquanto morava no EUA e quando engravidou, eles se mudaram para a Alemanha. Desembarcando no país aos seis meses de gravidez, ela estava sem a família ou amigos e tinha um contato virtual com todos eles.
 
Quando o pequeno Luca nasceu, ele estava doente, com vários órgãos debilitados e foi direto para a UTI. Ficou internado e morreu um dia antes de completar 2 meses.
 
“Foi uma tragédia, não sei nem explicar. Acho que entrei até em depressão, não conseguia fazer nada, só me perguntar por quê isso aconteceu” conta Larissa. “Em algum ponto desse luto, eu sabia que não ia dar conta sozinha e queria morrer. Não quis tirar minha vida, mas eu pedia a Deus para me levar. A dor era muito forte”, completa.
 
Apesar do apoio do namorado, da família dele e do suporte virtual dos parentes, ela acredita que ninguém estava entendendo o sentimento de uma mãe perder o filho tão novo. Em buscas pela internet, ela encontrou grupos de apoio e vídeos de outras mães contando suas histórias, mas tudo em inglês. Até que decidiu passar o natal no Brasil e chegando em Belo Horizonte, pesquisou por depoimentos em português e encontrou a Rede API.




 
A reunião que ela participou era uma celebração especial em memória as pessoas que se foram muito jovens e todos acendem velas. Luca morreu outubro e tudo ainda era muito recente para Larissa, mas ela diz ter sentido um conforto que procurou em todo lugar e não teve. “Naquele grupo não tem julgamento. As pessoas te acolhem e transmitem uma energia de ‘estou aqui, te vendo. Consegui superar, voltei a sorrir, você consegue’” ela completa.
 
No dia, o namorado Felix Buck, estava presente, não falava nem uma palavra de português e chorou tanto quando Larissa. Segundo ele dava para ‘sentir a energia’ emocionante durante os relatos. “Não tem errado, pode chorar sem medo. Lá eu pude falar do meu filho sem tabu. Quando cheguei no Brasil, quase ninguém foi me visitar, ninguém tinha coragem nem de tocar no nome do meu filho” ela diz.
 
Os pais Larissa Nogueira e Felix Buck com o filho, Luca Campos Buck no dia de seu batizado (foto: Arquivo pessoal)

 
“Isso, pra mim, foi super difícil, mas as pessoas não têm coragem de conversar, por não quererem te magoar. A partir daquele 8 de dezembro de 2019 eu comecei a melhorar e reconstruir meu luto” completa Larissa, que diz ter conhecido outra mãe com a mesma dor e ambas trocaram a experiência. Além disso, ela afirma ter percebido que mesmo se o filho tivesse vivido vários anos, a dor não seria diferente, porque ‘não temos a pessoa amada de qualquer forma’. 
 
Larissa manteve contato com o grupo mesmo após voltar para a Alemanha, já que os encontros passaram a ser virtuais em abril de 2020. Depois de refazer seu luto e reconstruir a vida, ela e o namorado estão aguardando a chegada de mais um bebê, mas Luca está presente na sua memória de uma forma bonita, com os momentos que puderam estar juntos. 
 
*Estagiária sob supervisão do subeditor João Renato Faria





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