Jornal Estado de Minas

Morte no Carrefour

Governo endossa clima favorável à morte de João Alberto, dizem escritores


Dois escritores que descortinam o racismo nas respectivas obras literárias apresentam Porto Alegre como cenário de violações cotidianas aos negros. O Estado de Minas entrevistou Jeferson Tenório, autor de O avesso da pele (Cia.das Letras) e Paulo Scott, de Marrom e amarelo (Alfaguara) sobre o assassinato brutal de João Alberto em uma loja do Carrefour de Porto Alegre, nesta quinta-feira (19), vésperas do Dia da Consciência Negra, depois de espancado por segurança e com anuência de um policial. As imagens que viralizaram chocam tamanha a brutalidade e violência contra o homem negro, que não teve qualquer chance de reagir.





Jeferson não conseguiu assistir ao vídeo até o fim. "A cena é muito brutal. A gente acaba se acostumando a ver isso, mas, toda vez que a gente se depara com isso, parece ser a primeira vez". Nascido no Rio de Janeiro, Jeferson se mudou para Porto Alegre, onde vive a família. Quando tinha 13 anos e, ao longo de 30 anos na cidade, por ser negro, foi abordado 13 vezes pela polícia em função de sua cor.

Com o livro O avesso da pele reconhecido como um dos livros mais importantes produzidos em 2020, Jeferson destaca que, na atualidade, os brasileiros passaram a dominar a gramática antirracista, mas as ações de combate ao crime não são colocadas em prática.

"A gramática antirracista se popularizou. As pessoas têm falado sobre isso, mas o que estou percebendo é que, na prática tem tido pouco efeito. Tem que haver mais ações de criação de leis, dar mais oportunidade para que pessoas negras possam ocupar determinados espaços e que não seja visto como favor ou vitimismo." 

No livro, Jeferson contra a história do professor Henrique que é assassinado numa desastrosa abordagem policial. O escritor também passou por situações de racismo em Porto Alegre. "Há um trajeto percorrido para que a morte de pessoas negras acabe se materializando."




 
"As inúmeras abordagens que sofri ao longo de anos sempre foram abordagens do que eu estava fazendo ali - essa ideia de que pessoas negras não podem caminhar em determinados espaços e são tidos como uma ameaça." 

Postura antiracista é combater os pares racistas

Jeferson destaca que o estado do Rio Grande do Sul se orgulha das origens européias e não reconhece a cultura negra. "Há toda uma história por trás para que Porto Alegre seja uma capital racista". Ele lembra que a Revolução Farroupilha (1835-1845), motivo de orgulho para o Estado, terminou com a morte dos lanceiros negros a quem havia sido garantida a liberdade caso lutassem pela causa. Mas, os negros não só não foram libertos, como foram mortos.
 
Ele lembra que ter uma postura antirracista é também combater os pares que sejam racistas. "Dizer para a pessoa está cometendo racismo. É necessário união de forças entre brancos e negros, mas ainda vejo que estamos muito no discuro e com pouca prática"

Paulo Scott destaca que Porto Alegre não é diferente de outras cidades do Brasil. "Temos no Brasil inteiro uma lógica de opressão racial explícita. O racismo no Brasil não é velado. Ele é encampado pelas forças públicas. Ele é aceito, não enfrentado e não combatido, explicitamente pelas políticas públicas", diz. Em Marrom e amarelo, Paulo narra a história de dois irmãos miscigenados que é marcada pela discriminação racial.
 
O escritor chama atenção para as falas do presidente Jair Bolsonaro. "Quando você tem uma liderança nacional que nas suas falas, no discurso, não enfrenta essa urgência nacional, na cabeça de muita gente é estímulo para o aumento, manutenção e permanência dessa violência sistêmica no Brasil. Tenho certeza que, neste momento, há um avanço no pensamento na política e nos espaços sociais diversos de um entendimento que a violência contra as pessoas pobres, a repressão contra as pessoas pobres, contra as pessoas de pele escura é a solução da civilização brasileira neste momento. Tem o endosso de boa parcela da política, do Judiciário, boa parcela do Ministério Público, boa parcela da polícia".




O racismo em Porto Alegre 

O combate ao racismo apareceu pouco no debate nas últimas eleições de Porto Alegre. Pela primeira vez, vereadores negros formam uma bancada na Câmara Municipal, mas um candidato à prefeitura lamentou a vitória de candidatos negros. "Isso demonstra o quanto há um olhar racista e preconceituoso quando pessoas negras ocupam esses espaços. O escritor defende ações para que não seja mais "um corpo negro que vire estatística".
 
No entanto, Paulo Scott defende que olhar Porto Alegre como um caso isolado é um erro. "Tem uma estratégia clara de aposta na violência, na segregação, no sectarismo, na negação explícita de direitos fundamentais. Isso coloca Brasil na tragédia. Lá na ponta, um segurança, um homem armado, enfim se acha no direito de violentar o outro". Natural de Porto Alegre, Paulo mora em São Paulo e destaca que lá na cidade também são constantes as violações da polícia em relação às pessoas negras. 
 
  

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