Jornal Estado de Minas

EXCEÇÃO À REGRA

Em momento histórico na tv brasileira, Globo News coloca no ar um jornal apresentado apenas por negros

Heraldo Pereira e Maju Coutinho se despedindo com o 'cumprimento black', gesto imortalizado pelos Panteras Negras americanos (foto: Repdorução/Globo News)
As redes sociais costumam ser, em sua maioria, territórios propensos ao compartilhamento de ideias rasas, voltadas para o simples entretenimento, quando não dedicadas ao despejo de declarações de ódio gratuito. Mas, em alguns momentos, servem também para reflexão e apontamentos de situações incoerentes.


Uma dessas incoerências apontadas nos últimos dias por internautas é o fato de a cobertura jornalística dos protestos contra o racismo ocorridos nos Estados Unidos e no Brasil estar sendo realizada – como de costume – por uma maioria de pessoas brancas.

Esta cobrança dos espectadores rendeu um momento histórico no jornalismo televisivo brasileiro: um programa inteiramente apresentado por negros.

O Em Pauta, da Globo News desta quarta-feira foi apresentado por Heraldo Pereira e teve como comentaristas as jornalistas Flavia Oliveira, Zileide Silva, Aline Midlej, Lilian Ribeiro e Maria Júlia Coutinho.

A edição levou o experiente âncora Heraldo Pereira às lágrimas. Após ouvir o relato das colegas, Heraldo se emocionou ao falar de seu início de carreira, aos nove anos como office-boy em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, até chegar à televisão. 


Logo na abertura do programa, Flávia Oliveira, adepta do candomblé, marcou território já na sua saudação: “Muito boa noite, Heraldo e às minhas colegas. É uma alegria para mim, adentrar o terreiro do Em Pauta”.

Todas as jornalistas relataram casos em que foram vítimas de preconceito racial em suas trajetórias profissionais ou na vida cotidiana.

Flávia foi a primeira e contou sobre quando se internou em um hospital para uma cirurgia. Por causa de sua religião, ela estava vestida de branco.

“A enfermeira me viu, uma mulher negra, vestida de branco e perguntou: ‘Ué, a dona Flávia já foi para o centro cirúrgico?’ Uma mulher negra vestida de branco num quarto de hospital de rico é, naturalmente, a acompanhante da madame e nunca a paciente. Esse é o retrato do racismo brasileiro. Ora velado, ora escancarado”, contou a jornalista.


O episódio narrado por Zileide Silva foi forte, assim como a forma com que ela o descreveu. Contou uma passagem em que se dirigiu à Fiesp para entrevistar o presidente da entidade, acompanhada de um cinegrafista branco, loiro e de olhos azuis. Chegando no local, Zileide foi desprezada pela secretária.

Entramos e a secretária não se dirigiu a mim. Ela só conversou com o cinegrafista Ricardo. De repente a porta abriu, saiu o presidente da Fiesp, me deu um abraço e falou ‘Zileide, que ótimo você aqui’. Olhei para a cara dela, e ela completamente constrangida”, narrou.

Segundo a jornalista, sua reação também foi dura, como forma de mostrar que situações como a descrita não podem acontecer.

O que eu fiz? Eu levantei o nariz, porque não dá para aceitar esse tipo de situação em nenhum momento. Falo isso porque quero que colegas negras e negros como eu saibam que não dá jamais para abaixar a cabeça, em nenhum momento, em nenhuma hipótese. Nunca esqueci esse momento”.


“Que isso se torne uma normalidade”

Entre os presentes nesse programa ímpar, esteve a apresentadora do Jornal Hoje, da TV GloboMaria Júlia Coutinho. A competente e carismática Maju começou na emissora como repórter em 2007 e ganhou notoriedade alguns anos depois, quando começou a apresentar a previsão do tempo no Jornal Nacional.

Em 2015, foi vítima de comentários racistas de internautas na página do Jornal Nacional, em um post em que aparecia uma foto da jornalista.

O episódio desencadeou uma campanha aderida por vários jornalistas e usuários das redes sociais, que divulgaram em massa a hashtag #SomosTodosMaju.

No Em Pauta desta quarta, ela começou falando sobre as vezes em que teve que estar com o microfone empunhado para provar ser uma repórter da Globo. Falou, também sobre seu desejo de que a presença negra seja mais frequente na tela. “Que isso se torne uma normalidade”, disse a jornalista.


Em seguida, descreveu uma situação inédita pela qual passou durante uma viagem em família.

“Viajei com meu marido para o exterior. Ele, negro, saiu para passear à noite em um parque. Não pude ir porque não estava passando muito bem. Ele voltou radiante, falando assim: ‘Pela primeira vez eu me senti livre de passar ao lado de mulheres brancas, de senhoras brancas e não sentir um olhar de repulsa e de medo’”, contou.

Maria Júlia seguiu: “Mortes acontecem mais cedo na nossa comunidade. Quantos parentes eu já perdi mais cedo e a gente sabe que é por desgaste emocional. Porque o racismo mata sim, o racismo nos fere. Das violências diárias que a gente acaba tendo que olhar e enfrentar. E esse enfrentar é um gasto de energia tão grande que a gente precisa se trabalhar muito para não sucumbir, como a Zileide disse”.

Contrariando as estatísticas

A presença de pessoas negras em segmentos e classes privilegiados da sociedade ainda é escassa.

O programa desta quarta é, infelizmente, raro na televisão brasileira e se trata de um caso isolado de representatividade.


Segundo levantamento realizado por estudantes do departamento de jornalismo do Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH) em 2019, os negros têm pouco – ou, em alguns casos, nenhum – espaço nos postos de maior destaque dos veículos de comunicação no Brasil.

Na TV Globo, por exemplo, os apresentadores de telejornais eram à época do estudo, 87,5% brancos e 12,5% pretos.

Entre os 82 apresentadores e comentaristas da GloboNews, a divisão étnica era a seguinte:

74 brancos;
5 pardos (Claufe Rodrigues, Cristiana Lobo, Pedro Neville, Rafael Coimbra, Ronaldo Lemos) e;
3 pretos (Heraldo Pereira, Aline Midlej e Flávia Oliveira).

Eram 89,1% de profissionais brancos e 10,8% de negros (6,75% pardos e 4,05% pretos).

Entre os pretos, dois têm posição de destaque no canal. Heraldo Pereira, experiente jornalista do Grupo Globo é o apresentador titular do Jornal das Dez, o mais importante programa da casa, exibido diariamente às 22h.


Além de Heraldo, Aline Midlej também tem presença importante na grade. Ela é uma das apresentadoras do Jornal GloboNews Edição das 10h (dividindo a ancoragem do programa com Raquel Novaes, que é branca).

Eventualmente, Aline também substitui José Roberto Burnier (branco) na apresentação do GloboNews Em Ponto (programa diário, de 6h às 9h da manhã).

A outra jornalista da cor preta no quadro do canal é Flávia Oliveira, comentarista do vespertino Estúdio i, programa apresentado por Maria Beltrão de segunda a sexta, às 14h. Porém, como há um rodízio entre os 13 comentaristas do programa, Flávia não aparece diariamente na tela.

A baixa representatividade se repete no jornalismo esportivo, de acordo com matéria publicada pelo Superesportes no final do ano passado.