Eles chegaram para trabalhar como médicos e agora são motoristas, ambulantes, faxineiros, criadores de peixes ornamentais e pedreiros. Desde o fim do ano passado, quando o governo cubano rompeu o acordo de cooperação com o Brasil em reação a críticas do então presidente eleito Jair Bolsonaro, um grupo de 2 mil profissionais do Mais Médicos decidiu continuar no País, diante da promessa de que não ficariam desamparados. Mas até agora não há perspectiva de que voltem a exercer a Medicina.
Niurka Valedez Perez Schneider foi acolhida pelo prefeito da cidade goiana de Cidade Ocidental. Deixou o posto onde atuava e passou a trabalhar no hospital, em uma atividade administrativa. "Quando chego, evito entrar pela porta principal. Sempre tem um paciente ou outro que pergunta se não posso dar uma olhadinha rápida. Atender é minha paixão, mas estou impedida."
Roberto Carlos Rodriguez Bach vive na cidade amazonense de Nova Olinda do Norte e vez ou outra é também abordado por moradores em busca de uma consulta.
Enquanto a aldeia esperava por um médico, Bach viu suas economias irem embora. A solução foi começar a trabalhar com a mulher, vendendo farofa com carne salgada em uma praça da cidade. "Isso faço à noite. De dia, trabalho em um supermercado, arrumando estoques."
Chamados de "irmãos" no programa de governo de Bolsonaro, os cubanos acreditavam que teriam uma oportunidade de continuar atuando.
"Fomos humilhados. Nossa vez nunca chegou", comenta Niurka. A estimativa é de que cerca de 700 casaram-se com brasileiros e, por isso, têm permissão para trabalhar no País. Mas isso não vale para a Medicina. Estrangeiros que não estão no Mais Médicos somente podem exercê-la se validarem o diploma. Isso é feito por uma prova, cuja realização é determinada pelo MEC, com calendários mais rígidos e mais longos que vestibulares. Enquanto uma solução não vem, o grupo resiste, pensa em novas formas de sustento e se organiza para cobrar respostas do governo federal.
Reflexos
O Ministério da Saúde organizou sucessivas rodadas de seleção para preencher 8.517 vagas do Mais Médicos, com formados no Brasil ou graduados no exterior.
Os reflexos da dificuldade enfrentada pelo preenchimento dos postos de saúde podem ser constatados no Diário Oficial. Semana passada, para conter o descontentamento dos municípios - os principais afetados, sobretudo na atenção básica -, o Ministério da Saúde afrouxou as penalidades para equipes incompletas do Programa de Saúde da Família. Antes, municípios que não repusessem profissionais da equipe em um prazo de 60 dias eram penalizados com a suspensão de repasses de recursos. Agora, esse prazo é de seis meses, justamente para dar uma folga na contratação.
Licença
Secretários municipais estão entre os grupos que mais fazem pressão para que a situação dos médicos cubanos seja resolvida. Junqueira disse estar otimista e espera que, até o fim do mês, um projeto de lei a respeito esteja pronto. O grupo defende a concessão de uma autorização para cubanos trabalharem por período determinado, a exemplo da concedida pelo Ministério da Saúde a médicos formados no exterior. Ela prevê uma série de condições: cumprir uma carga horária mínima e só poder trabalhar na atenção primária nas cidades atendidas pelo Mais Médicos. "A ideia seria estender a autorização por um ano ou dois para que cubanos possam voltar a atuar", diz Junqueira. Nesse formato, seria estabelecido um período para que o profissional pudesse se preparar para realizar a prova de validação do diploma.
Ao jornal O Estado de S.