Em meio à turbulência causada por uma carta que acusa o papa Francisco de ignorar alertas sobre abusos sexuais na Igreja, a Comissão Pontifícia de Proteção ao Menor se reúne nesta quinta-feira, 6, no Vaticano para definir ações práticas sobre o tema. O Brasil é um dos três países - ao lado de Zâmbia e Filipinas - escolhidos pelo pontífice para desenvolver um projeto-piloto, visando a dar voz às vítimas. A informação foi dada ao jornal O Estado de S. Paulo pelo representante brasileiro na comissão, o leigo Nelson Giovanelli Rosendo dos Santos.
O assunto preocupa a hierarquia e a ideia é que possa ser discutido na próxima reunião da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para isso, trabalha-se com a vinda do arcebispo de Boston, Sean O'Malley, presidente da comissão pontifícia. "É o nosso desejo, mas ainda não temos a resposta do cardeal", afirmou Santos, nomeado pelo papa para o grupo em fevereiro.
Ainda não há detalhes sobre como será o projeto. No dia 29, Santos esteve com o presidente da CNBB, dom Sérgio da Rocha, para apresentar a proposta. "Expus a ele o projeto que vamos fazer no Brasil e fui muito bem acolhido, até porque o Vaticano já havia encaminhado uma apresentação minha a d.
O jornal procurou d. Sérgio, que em nota confirmou o encontro e se limitou a dizer que está dando "sequência às iniciativas para prevenir qualquer situação de abuso na Igreja". Segundo o texto, oportunamente serão dadas mais informações. Já o núncio apostólico do Vaticano no Brasil, d. Giovanni D'Aniello, informou que a comissão pontifícia "tem autonomia para realizar seu trabalho, conforme as diretrizes definidas pelo papa Francisco". "Não interferimos.
Santos é o único representante brasileiro na comissão, integrada ainda por especialistas de Grã-Bretanha, Índia, Itália, Austrália, Etiópia, Holanda, Tonga, Filipinas, Colômbia, Alemanha, Polônia, Zâmbia, África do Sul e Estados Unidos. A segunda reunião plenária deste ano deve ser aberta nesta quinta com as boas-vindas do papa e a bênção apostólica aos membros.
A inclusão do brasileiro aconteceu após o término do mandato do colegiado anterior, marcado por polêmicas. Três membros renunciaram voluntariamente: a ex-vítima Marie Collins; a psicóloga francesa Catherine Bonnet, especialista em violências sexuais contra menores; e Peter Saunders, também vítima, que fez críticas aos trabalhos da comissão.
O novo colegiado assumiu sob pressão, que só aumentou nos últimos meses - com a renúncia coletiva dos bispos chilenos, após investigação de acobertamento de abusos, e a divulgação de um relatório americano acusando mais de 300 religiosos. A tentativa de dar voz às vítimas, o que também daria mais transparência a denúncias, é um dos principais pontos em discussão.
Modelo
A comissão pontifícia deve agora discutir como funcionará o projeto. "A ideia é que se crie um painel consultivo de vítimas que possam ser ouvidas e, com a experiência delas, possamos levar outras a tomarem a coragem de falar e se abrir." No âmbito civil, esse trabalho de escuta das vítimas é feito por ele na Fazenda da Esperança, em Guaratinguetá (SP), há 35 anos. "Desde que conheci os primeiros jovens na rua que se drogavam, eles contavam o que acontecia na sua infância, com o tio, com o vizinho. Aquela criança, depois de adulta, se refugiou nas drogas e, ao se abrir conosco, não houve mais necessidade da droga. Queremos usar essa experiência aqui na fazenda para o âmbito eclesial no projeto-piloto que vamos criar." O objetivo é encorajar as vítimas a denunciarem violadores e acompanhar o processo para evitar o acobertamento dos casos.
Santos vai propor que o projeto comece na própria fazenda, por ser um local de retiro, onde as pessoas poderiam se abrir sem medo.
Investigação
Ele conta que, anos atrás, se deparou com o caso de uma pessoa que foi vítima de abuso por um religioso. "Fizemos o que devíamos fazer. Nossa tarefa é acolher e ajudar (a pessoa) a se libertar daquele peso, daquela ferida."
À comissão, segundo ele, não cabe investigar os casos, já que essa é competência de órgãos internos da Igreja, como a Congregação para a Doutrina da Fé e a Congregação para o Clero, além das autoridades civis. "Somos chamados a estudar e refletir, cada um a partir de sua própria realidade, profissão e cultura, onde a Igreja errou no passado em enfrentar esse problema sensível e profundo do abuso sexual. Quando isso acontece dentro da Igreja, sai para fora com uma potencialidade muito grande, provocando um estrago muito maior que em outro segmento, pois o padre representa a pessoa de Cristo."
Santos disse que ainda não tem números do problema no Brasil. "Embora não chegue ao nível que estou escutando em outros lugares, é preciso trabalhar", afirmou. Considerando apenas os casos divulgados pela imprensa, a reportagem apurou que, desde o início deste ano, ao menos dois padres e um ex-padre foram presos ou condenados por abusos - um deles, no Rio Grande do Sul, chegou a celebrar missas usando tornozeleira eletrônica. Uma investigação, com um enviado papal, foi realizada em uma diocese paulista há duas semanas.
'Tolerância zero'
Mesmo sem poder de apuração, a comissão deve orientar as vítimas para que façam a denúncia aos órgãos que podem investigar. "Existe uma resistência de aceitar a realidade dos abusos contra menores que infelizmente acontecem na Igreja.
Muitas vezes, segundo ele, o acobertamento tem a cumplicidade de pessoas de fora da Igreja. "Nós todos estamos sendo convocados pelo Santo Padre para ajudar aqueles que estão na posição de responsabilidade na Igreja a entender que, se nós queremos amar realmente a Igreja, devemos priorizar essa questão do menor e do adulto vulnerável."
A comissão elaborou uma linha de diretrizes para que todos os ambientes clericais adotem medidas para evitar abusos. "Como o papa diz, insistentemente, é tolerância zero", disse o brasileiro, citando a Carta do Papa Francisco ao Povo de Deus, divulgada no dia 20. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo..