Brasília, 20 - A Sociedade Brasileira de Pediatria preparou um manual para orientar os médicos da especialidade sobre como atuar nos casos de crianças com disforia de gênero - o descompasso entre o gênero biológico e a identidade. "Esse é um tema que tem aumentado nos consultórios e muitos profissionais têm dúvidas sobre como lidar com o assunto. Nossa intenção é trazer o máximo de informações", afirma a presidente da SBP, Luciana Rodrigues da Silva.
Um dos assuntos abordados pelo guia é a possibilidade de que crianças com essas características se submetam em casos específicos à suspensão do processo de puberdade. A estratégia, realizada em centros de pesquisa habilitados, permite que o adolescente ganhe tempo para avaliar sua identidade sexual, sem as pressões das transformações da puberdade.
A prática vem sendo adotada em três centros de referência do País instalados em São Paulo, Campinas e Rio Grande do Sul. "A puberdade pode ser extremamente sofrida para crianças com disforia", afirma o coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Alexandre Saadeh, um dos consultores para a preparação do guia.
A supressão da puberdade é reversível. Caso, durante o processo, o adolescente decida que deseja permanecer com sexo biológico, determina-se a suspensão do uso dos hormônios. No ambulatório da Medicina da USP atualmente cinco crianças realizam o bloqueio. Há ainda outras quatro que poderão iniciar o processo, quando a puberdade estiver mais próxima.
Luciana observa que a estratégia é usada em casos específicos e não é essa a atribuição do pediatra. "Fizemos um guia de atualização, onde vários tópicos são abordados, como o que é a transexualidade, como identificar a disforia e quais estratégias estão disponíveis."
A presidente da sociedade afirma que não raramente o pediatra é o primeiro profissional de saúde a ser procurado para conversar sobre sexualidade e, em alguns casos, sobre variação de gênero das crianças e adolescentes. "A orientação correta é fundamental", assegura Saadeh. Tanto ele quanto Luciana afirmam ter aumentado o número de pais que chegam ao consultório com dúvidas sobre a identidade sexual dos filhos, por causa da maior liberdade para se tratar do tema.
Erros
Para Saadeh, é essencial que pediatras não cometam erros do passado, como culpar os pais ou dizer que a criança tem de ser condizente com o sexo que nasceu. "Muitos casos vão evoluir para homossexualidade, não necessariamente para a transexualidade."
'Processo recompensador'
Anderson Almeida muda o tom de voz ao falar do dia em que entrou em uma loja para fazer compras para sua filha Carol, há três anos. O gesto foi para ele - e para toda a família - uma mudança de vida e uma libertação. Anderson saiu da loja com vestidos, blusas, presilhas para cabelos, muitas em tons de rosa - a cor preferida, mas até então pouco usada por Carol.
"Foi um processo difícil, mas muito recompensador", conta.
Meses depois de muita resistência e de sucessivas tentativas frustradas de fazer Carol gostar de futebol, máquinas e mecânica, Almeida concordou em procurar o ambulatório da Faculdade de Medicina da USP. "A pressão foi grande. Meus pais, religiosos, diziam que estávamos errados, foi um choque." A cada dia que passa, no entanto, Almeida se convence de que a mudança foi para melhor. "Carol antes era desatenta, agressiva. Hoje é uma menina feliz, carinhosa com todos e muito interessada em aprender", disse.
A transformação de Murilo em Carol começou a ocorrer há três anos.
O Estado de S. Paulo.
(Lígia Formenti).